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Precisamos de Betinhos

Luiz Henrique Lima é professor e Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT.
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A cena é corriqueira e repete-se aos milhares, diariamente, nas cidades brasileiras. Numa rotatória movimentada, uma mulher magra, modestamente trajada, se aproxima dos carros que estão em velocidade reduzida. Porta um cartaz onde se lê: “Peço ajuda para comida. Tenho fome.” A poucos metros estão crianças, também magras. Os motoristas seguem e alguns, logo adiante, ingressam em refinado mercado que disponibiliza produtos importados de boa qualidade e muito caros. Por vezes, ao retornar, já não veem aquela mulher e crianças, se é que nelas atentaram anteriormente.
A cena é um fragmento de nossa realidade distópica. A fome, a desigualdade, a indiferença, a invisibilidade.

Outro dia, ao presenciá-la mais uma vez, recordei-me do meu amigo Betinho – Herbert de Souza, o irmão do Henfil da música O Bêbado e o Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, imortalizada na voz de Elis Regina.
Encontrei Betinho logo após o seu retorno ao Brasil com a anistia. Sua figura frágil, sua fala tranquila, seu olhar sereno e seu sorriso tímido foram para mim um espanto. Então era esse o “perigoso subversivo” tão estigmatizado pelos esbirros da ditadura militar golpista de 1964?

Conhecendo-o, percebi o porquê do temor que inspirava aos reacionários.
Sua força não vinha da compleição física, do tom de voz, da habilidade retórica ou de um linguajar contundente. Vinha da argumentação clara, com palavras simples e dados precisos. Vinha da coerência das ideias e das propostas. E vinha da indignação com a injustiça, da insubmissão às mentiras, do inconformismo com a fome e da irresignação com a indiferença.

Mesmo sendo de gerações com experiências bem distintas, Betinho e eu nos tornamos amigos. Costumávamos almoçar regularmente num restaurante em Botafogo próximo à sede do IBASE, instituição que ele criou e liderou e que inspirou um sem-número de outras organizações da sociedade civil. Ali ouvi muitas análises, recebi alguns conselhos e aprendi com exemplos.

Betinho ensinou que não é preciso disputar eleições ou filiar-se a um partido para exercer liderança política. E que transformar a sociedade é mais importante e bem mais difícil do que conquistar mandatos ou fragmentos de poder. Ensinou que há causas que transcendem partidos, crenças ou ideologias. Basta um mínimo de sensibilidade humana e de solidariedade. A fome é uma dessas causas e é a mais urgente.

Sem nunca ter sido candidato, Betinho colocou o tema da fome em lugar de destaque no debate público brasileiro. Liderou a maior mobilização solidária da sociedade civil brasileira, tanto em número de voluntários como em número de assistidos. A repercussão do trabalho da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida obrigou os governos a se mexerem e agir. Diversos programas foram criados e aperfeiçoados ao longo dos anos. A situação melhorou muito. O Brasil chegou a sair do Mapa da fome das Nações Unidas.

Mas agora a fome voltou. Está nas rotatórias, nas esquinas, nas praças de nossas cidades. Não vê quem não quer. E há muitos que não querem ver.

Em relação à fome, o Brasil retrocedeu décadas, como está retrocedendo em relação a diversas políticas públicas e direitos sociais e humanos.

Como a presença de Betinho seria necessária hoje! Precisamos de sua voz. De sua indignação. De sua capacidade de persuasão e mobilização. Precisamos sacudir o conformismo e agir. Nenhum brasileiro precisa passar fome. Nenhum brasileiro deve se acostumar e se conformar ou fingir não ver quando a fome está na sua esquina ou rotatória.
Precisamos de novos e muitos Betinhos. Sempre. Mas agora, talvez, mais do que nunca.

 

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