Em uma cela da Polícia Civil, no Paraná, encontra-se Roberto
Bertholdo, um advogado articulado, bem educado e sedutor. Preso há oito meses, ele é acusado pelos crimes de tráfico de influência, compra de sentenças judiciais e lavagem de dinheiro. Antes de ir parar no xadrez, Bertholdo era conselheiro da estatal Itaipu Binacional, circulava com desenvoltura nos bastidores dos Três Poderes e estava cotado até para ser ministro do Desenvolvimento ou do Esporte, na última reforma ministerial, na cota do PMDB. Mas o mundo de Bertholdo caiu. Em novembro passado ele foi detido após investigação do Ministério Público. Esta semana, ISTOÉ pôs as mãos em um calhamaço de mais de 500 páginas que descrevem os detalhes do esquema que levou Bertholdo à prisão. Trata-se da Ação Penal Pública (Procedimento Criminal) 2005.70.00.029546-2, que corre na 2ª Vara Criminal de Curitiba, em segredo de Justiça. Os delitos cometidos por Bertholdo, segundo aponta a ação do Ministério Público, envolvem ministros e ex-ministros do Superior Tribunal de Justiça. E mais: o esquema de lobby para venda de sentenças seria administrado por alguns dos filhos desses ministros. Para o Ministério Público, Bertholdo era o pivô, o elo entre clientes e o Judiciário.
A ação, resultado de uma força-tarefa do Ministério Público com a Polícia Federal para investigar evasão de divisas e lavagem de dinheiro, expõe o intestino de um grande esquema de corrupção na Justiça – e, de quebra, muitas histórias paralelas de mensalão, falcatruas no governo, tortura física e sexo. No caso mais grave, ponto central da denúncia de cinco procuradores contra Bertholdo, ele é acusado de oferecer suborno a ministros do STJ para reverter um caso em favor de um cliente. Bertholdo era advogado do empresário e político paranaense Antônio Celso Garcia. Nas eleições de 2002, Tony Garcia, como é conhecido no Paraná, era deputado estadual e candidato ao Senado pela segunda vez – e Bertholdo era seu suplente. Para que pudesse se candidatar, Garcia precisava de um habeas corpus que trancasse um processo no qual era acusado de crime contra o sistema financeiro por envolvimento numa fraude do consórcio Garibaldi, liquidado pelo Banco Central em 1994. Bertholdo foi então contratado para “limpar” o nome de Garcia. No dia 1º de agosto de 2002, ele impetrou habeas corpus em favor de Garcia. É aí que começa a história de corrupção contada pelo Ministério Público, a partir da denúncia inicial de um ex-sócio de Bertholdo, Sérgio Costa Filho.
Por conta de desentendimentos sobre dinheiro, Bertholdo chegou a espancar e torturar Sérgio Costa Filho, que deu o troco fazendo a denúncia. De acordo com a denúncia de Sérgio ao MP, Bertholdo pediu a Tony Garcia R$ 600 mil, dinheiro que seria usado para que o então ministro Vicente Leal concedesse liminar no pedido de habeas corpus. De fato, no dia 2 de agosto, a liminar saiu, por decisão do ministro Vicente Leal e, com ela, Tony Garcia pôde concorrer às eleições. No dia 8 de agosto, Tony Garcia emitiu um cheque de sua empresa, a Maggiore Comércio de Combustíveis Ltda., que foi depositado na conta da empresa de Bertholdo, a Antecipa Consultoria. Aos poucos, o valor foi saindo da conta em vários saques em dinheiro vivo, feito por pessoas como o motoboy Luiz Marcelo Alves.
Uso de laranjas – O MP desconfia que Bertholdo usou de “laranjas” para sacar o dinheiro e depois entregá-lo aos ministros envolvidos na operação em favor de Tony Garcia. Segundo a denúncia feita por Sérgio Costa Filho aos procuradores havia outras pessoas, além do ministro Vicente Leal, envolvidas na venda da sentença. Otávio Fischer e Pedro Aciolli, filhos do ministro do STJ Félix Fischer e do ex-ministro Pedro da Rocha Aciolli, teriam intermediado a operação no Judiciário em Brasília. Após a concessão da liminar, nova operação de dinheiro teria sido feita, conforme mostra a ação. Dessa vez, para assegurar um resultado favorável no julgamento do mérito do pedido de habeas corpus. Sérgio Costa Filho afirmou em seu depoimento que Bertholdo pediu a Tony Garcia R$ 500 mil para garantir o resultado. Tony, porém, conseguiu baixar a quantia para R$ 180 mil. Para o julgamento, Bertholdo trabalhou com a possibilidade de o ministro relator Paulo Galotti negar o habeas corpus. A segunda estratégia para favorecer Tony Garcia, porém, seria o ministro Paulo Medina pedir vistas do processo, postergando a decisão final. Foi o que efetivamente ocorreu no dia 7 de junho de 2004.
É por envolver autoridades do Poder Judiciário, como se vê acima, que o processo corre em segredo de Justiça. Os ministros e seus filhos envolvidos ainda não foram ouvidos no processo. A acusação do Ministério Público ajuda a explicar, porém, como políticos, a despeito dos processos judiciais que sofrem, conseguem se manter no páreo eleitoral. Há duas semanas, por exemplo, o Tribunal de Contas da União divulgou uma lista com nada menos que 2,9 mil políticos e administradores que, por conta de seus atos, estariam inelegíveis. E muitos deles continuam disputando as eleições de outubro.
Roberto Bertholdo não é um preso qualquer. Sua influência em Brasília remonta do governo Collor, mas foi no governo Lula que ele cresceu de forma exponencial. Primeiro foi nomeado conselheiro de Itaipu, se aproximou de grandes fornecedores da Estatal e, ato contínuo, sua casa em Brasília, no bairro do Lago Sul, virou um discreto reduto de conversas entre parlamentares, empresários e autoridades públicas. Em seus negócios privados, Bertholdo virou o representante junto ao Banco Central do espólio do banco Bamerindus, que sofreu intervenção e foi vendido há uma década para o inglês HSBC. Saiu-se tão bem na causa que foi adquirindo participações da família Andrade Vieira, fundadora do banco, até se tornar dono de quase 70% dos direitos sobre o Bamerindus. Em fins do ano passado a família Magalhães Pinto o contratou para tentar terminar também com a intervenção do Banco Nacional, anexado pelo Unibanco – e desta forma liberar R$ 6 bilhões retidos no BC. Nessa época, aos 43 anos, Bertholdo queria finalmente sair das sombras. Articulava com seu amigo do Paraná, o deputado José Borba, líder do PMDB, uma nomeação como ministro do governo Lula, do Esporte ou do Desenvolvimento. Bertholdo foi abatido pela prisão, durante as articulações da reforma ministerial.
Festa para juízes – O calhamaço produzido pelo Ministério Público e pela Justiça, porém, não pára nessa denúncia de compra de sentença no Poder Judiciário. Bertholdo começou a chamar a atenção dos procuradores da República que investigavam casos de lavagem de dinheiro sujo e evasão de divisas a partir das contas CC-5 do Banestado. Primeiro descobriram remessas suspeitas de Bertholdo para uma conta em Luxemburgo; depois monitoraram movimentações entre a conta no paraíso fiscal e uma conta do Itaú em Brasília, na agência do Lago Sul, aberta em nome de um certo Anselmo, que mais tarde os procuradores descobriram ser o motorista de Bertholdo. Nessa época, Bertholdo circulava com uma frota de automóveis importados – em Brasília, mantinha dois Audi A-6. Ocorreram então algumas coincidências. Primeiro, Tony Garcia foi apanhado pela força-tarefa do Banestado. Ficou preso entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005. Mas acertou com o MP entrar para o programa de delação premiada. Recebeu telefones grampeados pela PF e passou a usar um gravador colado ao corpo em suas conversas com pessoas suspeitas. Bertholdo era seu principal alvo. Ao mesmo tempo, ele era também monitorado por Sérgio Costa, sócio de Bertholdo. Suspeitando que estava sendo monitorado, Bertholdo acusou Sérgio de desviar
R$ 900 mil e de instalar grampos telefônicos e câmaras ocultas no escritório que ambos mantinham em Curitiba. Segundo relatou aos procuradores, Sérgio chegou a ser preso e algemado por Bertholdo, com a ajuda de seu segurança e de dois homens que se diziam policiais civis. De acordo com Sérgio, Bertholdo o espancou e o torturou com choques elétricos por 14 horas para que revelasse onde estariam os R$ 900 mil. Depois Sérgio foi encaminhado ao MP para revelar tudo o que sabia sobre Bertholdo. Em seu depoimento, só se refere ao ex-sócio como “meliante”.
Dos depoimentos de Tony Garcia e Sérgio Costa, assim como das gravações telefônicas, as autoridades produziram um conjunto de provas tão impressionantes sobre o funcionamento do poder federal quanto as revelações que há um ano vieram à tona com as histórias que envolvem Marcos Valério e Delúbio Soares. Uma das confidentes de Bertholdo, com quem costumava manter longas conversas ao telefone, era Mirlei de Oliveira, cafetina predileta das autoridades de Curitiba. Numa das gravações, ela conta que estaria sendo pressionada a revelar detalhes das suas relações com Bertholdo. Como festinhas que ele promoveria para juízes em hotéis com as garotas de Mirlei. Numa das conversas, ela se refere a uma festa específica, ocorrida no Hotel Bourbon, em Curitiba. “Fiz tanta festa para atender juízes, que não sei que festa é essa”, responde ela.
Remessas para Luxemburgo – Os grampos telefônicos também descortinam novos detalhes do esquema do mensalão. Sabe-se hoje que Marcos Valério era o principal operador do mensalão junto a deputados do PT, PL e PPB, três das legendas da base aliada do governo. De acordo com o MP, Roberto Bertholdo era o operador do mensalão junto ao PMDB – e 51 dos 81 deputados do partido receberiam dinheiro do lobista para votar com o governo. O advogado teria entrado na operação através do deputado paranaense José Borba, líder do PMDB na Câmara. No início do governo, Bertholdo foi nomeado conselheiro de Itaipu na cota de Borba. Segundo o processo, ele ajudava o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares a operar um esquema de remessa de dinheiro para Luxemburgo. Também teria operado, a partir de Itaipu, para irrigar com recursos as campanhas de candidatos do PT a prefeituras do interior do Paraná, como Maringá, Londrina e Cruzeiro d’Oeste.
Uma das gravações que estão no processo corrobora uma história que chegou a circular logo que o esquema do mensalão foi descoberto. Teria ocorrido uma reunião da qual participaram os então líderes do PP, José Janene, do PL, Sandro Mabel, o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto (SP), e o líder do governo na Câmara, o petista Arlindo Chinaglia. Numa conversa com Tony Garcia, gravada por ele próprio, Bertholdo conta que durante essa reunião Janene e Mabel teriam dito que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conhecia todos os detalhes do esquema de compra de deputados da sua base de governo. Mais adiante, ainda segundo o relato de Bertholdo para Tony Garcia, Sandro Mabel teria dito: “Só eu falei umas 20 vezes pro presidente.”
A história de Bertholdo é ilustrativa para entender as relações incestuosas do poder. Ele começou a freqüentar Brasília há 20 anos, jovem advogado, levado pelo sogro de então, o deputado Erwin Bonkoski, um dos líderes do Centrão na era Sarney. A primeira vez que se envolveu com política foi em 1990, quando disputou o mandato de deputado estadual pelo extinto PRN de Fernando Collor – nesse pleito, Tony Garcia foi candidato a senador. Derrotado nas urnas, Bertholdo voltou a Brasília logo depois, em 1991, como lobista da empreiteira do sogro, a Tibagi, na época enrolada com cinco processos na Receita Federal. Durante o governo Collor, Bertholdo se tornou o melhor amigo do comandante Jorge Bandeira, piloto e sócio de PC Farias. Desde então freqüentador das melhores festas da corte, conseguiu se tornar advogado junto aos tribunais superiores de alguns pesos pesados da política paranaense, como os deputados José Janene e José Borba. Chegou a Itaipu em junho de 2003, na cota de Borba, mas por indicação junto ao Planalto do amigo Daniel Godoy, advogado ligado à cúpula do PT. No ano seguinte, quando surgiu o vídeo em que Waldomiro Diniz pedia propina ao bicheiro Carlinhos Cachoeira, Bertholdo foi sondado pelo amigo petista para ocupar seu lugar, como subchefe do Gabinete Civil do Planalto. Recusou por achar que ficaria muito exposto. Desde novembro, esse advogado ambicioso ocupa uma cela no Centro de Operações Especiais da Polícia Civil, em Curitiba. Seus processos tramitam rápido. Aos procuradores, Bertholdo diz que gostaria de entrar no programa de delação premiada. O problema é que, na hora de falar, continua jurando inocência e contando a versão de que não deu nenhuma propina aos ministros do STJ. Dias atrás, a um dos poucos amigos que restaram, Bertholdo disse que está com muito medo de morrer. “Sou hoje o maior arquivo vivo do País”, explicou. Seu amigo lhe deu um único conselho: “É melhor contar logo tudo o que você sabe.”