Carlos Ayres Brito, em seu voto no épico processo do mensalão, definiu como ofensa à democracia a compra de votos de parlamentares no processo legislativo. Para além do fisiologismo “tolerado” da política partidária, de bancadas governistas construídas mediante barganha de cargos e ministérios, o “inédito” era que aqueles mato-grossenses que elegeram Pedro Henry não foram por ele representados: o ex-deputado federal votava conforme lhe mandassem, em troca de um “bererézinho” mensal. Dinheiro na mão, calcinha no chão.
O mais bisonho nessa história nem é a gula dos parlamentares (cujo salário com 14º e verba de gabinete não impede que persigam rendas de lobby e corrupção ao invés do interesse público), mas a origem do dinheiro: quem pagava mensalmente para que votassem a favor dos “seus interesses” era o Poder Executivo – o próprio governo – e com dinheiro de caixa-dois (não declarado) que recebiam por meio do Partido, de patrocinadores de campanha indiretamente beneficiados pelas votações com maioria absoluta no Congresso Nacional (verbas, licitações, isenções, políticas públicas e de incentivo ao consumo, crédito, juros, leis – tudo).
Ainda, uma maioria no legislativo que vota por dinheiro a favor dos interesses do Executivo não vai fiscalizar, já que o bereré vai pra todos. Haja impunidade. E pior: sempre foi assim (só nisso concordo com meus raros amigos que ainda carregam a estrela vermelha no peito). Atrás dessa tal governabilidade foi que o PT seguiu a cartilha do PMDB – responsável pelas negociações dentro do Congresso também quando era base do governo FHC (do PSDB, atual oposição) – e se Lula pode dizer que não manjava dos paranauê, Fernando Henrique Cardoso não pode?
E se essa prática não é nova, também não se restringe ao legislativo federal. Óbvio. Mas enquanto na AL-MT os acertos seguem sendo orquestrados com maestria porJosé Geraldo Riva, presidente pela zilionésima vez e último representante do triunvirato que comandou a Casa nas últimas décadas (composto por ele, Silval Barbosa – atual Governador – e Humberto Bosaipo, que ocupava uma cadeira no TCE até ser afastado pela Justiça), na Câmara de Cuiabá seu genro foi filmado afirmando que também ali as negociatas envolviam um “bererézinho” para os outros vereadores. O carequinha deve estar #chatiado com o mancebo – e com razão.
Guri novo, em poucos meses à frente do legislativo municipal João Emanuel fez a lambança que o sogro-mentor não fez em vinte anos de muitas traquinagens na Assembleia (e nenhuma condenação transitada em julgado). E, flagrado dizendo que precisava de uma porcentagem da patifaria pra pagar pela conivência dos demais parlamentares, duas conclusões são inafastáveis: (1) se grande parte dos vereadores aceita dinheiro pra silenciar, aceita também pra votar; (2) se uma maioria na Câmara pode ser comprada (inclusive elegendo-o Presidente), o retorno de Julio Pinheiro à Presidência com apoio de Mauro Mendes, mesmo sendo investigado por fazer igual no mandato anterior, só atesta que posição e oposição jogam no mesmo tabuleiro.
Triste. Ainda mais num contexto onde aqui sabemos mais do Congresso Nacional do que sobre o que está rolando na Câmara. E, se fomos às ruas meses atrás bradar por saneamento político, cabe somente a nós, cuiabanos, exigir um legislativo municipal moralizado, transparente e efetivamente representativo – e ele não pode ser composto por um vereador que, em cadeia nacional, confessa que corrompe seus pares mediante pagamento; nem pelos corrompidos. Diante da prisão de umJosé Genoino não cassar um João Emanuel é inconcebível.
Urgente também é tirar a bunda gorda do Sr. Júlio Pinheiro daquela cadeira: sem lógica reconduzir ao comando da Casa um caboclo investigado pela mesma conduta que justificou o afastamento do presidente anterior, para que ele faça o trabalho sujo agora em prol da Prefeitura. A Câmara precisa começar a cumprir sua função, que é representar nossos interesses – não os interesses do Riva ou do Mauro, que no último ano se revezaram no controle de confusas bancadas majoritárias formadas na base do maior lance.
De qualquer forma, recebendo de fulano ou sicrano, da construtora X ou da Y, vale lembrar que não é só por ganância: o que esculacha com nosso sistema político é justamente nossa realidade eleitoral, já que daqui há alguns meses todos os candidatos com chances mínimas na corrida eleitoral pra deputado estadual – a menos visada deste pleito – gastarão no mínimo R$ 1.000.000,00 entre publicidade, material de campanha, cabos eleitorais, etc; quem vai bancar isso, vai bancar à toa?
Nessa, a Constituição vira um contrato de gaveta, a democracia representativa uma trollada e bobos somos nós que vamos sair de casa pra votar em pleno feriado. De novo.
Fellipe Corrêa vota Marina e é acadêmico de Direito da UFMT desde o primeiro governo Lula