Novembro é o mês de conscientização para a saúde do homem e a prevenção do câncer de próstata, a segunda doença masculina mais letal no mundo. Por que novembro? Tão somente pelo dia 17 de novembro ser o Dia Mundial de Combate ao Câncer de Próstata. Em outras palavras, a mortalidade pela doença independe de mês ou dia: quarenta e sete homens morrem diariamente de câncer de próstata no Brasil. E como a taxa mundial de mortalidade também é expressiva, foi criada na Austrália em 2003 a campanha Novembro Azul.
Exportada depois para outros países, a ideia da campanha Novembro Azul é sensibilizar os homens para o diagnóstico precoce, já que devido ao preconceito associado ao exame de próstata, muitos homens são diagnosticados com a doença já em estado avançado. Resulta daí a alta mortalidade masculina para a doença, pois quando identificado no início, o câncer de próstata tem índices altos de cura.
O debate público sobre a saúde do homem e o câncer de próstata e o preconceito masculino em relação ao exame do toque são as faces expostas, a ponta do iceberg de algo muito maior, o próprio iceberg, que é a masculinidade tóxica. Eu mesmo, reconheço agora, já fiz troça de amigos com o exame. Como um pedreiro que assenta um tijolo, ergui, em consequência, a muralha do estereótipo masculino sobre o exame, alimentei um pouco mais a masculinidade tóxica.
Entre a muralha e o iceberg: as consequências da masculinidade tóxica
As muralhas protegiam os castelos no passado, enquanto os icebergs afundavam navios. Desafios robustos, as muralhas e os icebergs são imagens adequadas para a masculinidade tóxica. Cunhada nos anos oitenta, a expressão masculinidade tóxica abrange atitudes e regras esperadas dos homens e reproduzidas entre gerações, um modelo de masculinidade que afasta o diálogo, o afeto e a demonstração de fraqueza.
Comportamentos hostis, repressão às emoções, incentivo à dominação, ausência de diálogo… Qual homem nunca agiu assim? Que me atire a primeira pedra. Quando meu irmão Rodolfo faleceu há quinze anos, meu pai não chorou, eu não chorei. Expressar emoções significaria fraqueza. Outro exemplo? Demorei anos para perceber o meu manterrupting, isto é, o comportamento de interromper a fala de uma mulher durante uma conversa (que, evidentemente, acaba por invalidar a sua fala).
Estudos mostram que a masculinidade tóxica aumenta as taxas de suicídio masculino, os homicídios e os acidentes de trânsito, além de vícios e doenças (como o câncer de próstata). Há, naquela masculinidade, até um tipo de suicídio masculino disfarçado de vício, que ocorre quando um beberrão disfarça as suas dolorosas fraquezas no vigor de uma mesa de bar, diariamente, por trinta anos. Testemunhei amigos de meu pai deixando a vida assim, já tive um amigo que partiu daquele jeito.
Se é péssima para os homens, a masculinidade tóxica é pior para as mulheres. Na minha experiência de promotor de justiça, sinto que o feminicídio e os crimes sexuais derivam daquela masculinidade, inundada da necessidade de reafirmação, tomada pelo abuso de poder.
Para além da saúde: como enfrentar a masculinidade tóxica?
Se existe aquele ponto comum entre os riscos gerados pelos homens para si e para outros (mulheres, crianças, outros homens), é evidente que a masculinidade tóxica deve ser enfrentada. Ouso refletir e sugerir medidas, institucionais e pessoais sobre o tema.
1. O direito penal é conhecido e utilizado como último recurso para a proteção de bens jurídicos. Por isso, ele pode reprimir mais a masculinidade tóxica que despreza e mata.
A personagem Raquel, interpretada por Helena Ranaldi, apanhava com uma raquete de tênis do marido Marcos, personagem interpretado por Dan Stulbach, na novela Mulheres Apaixonadas. Era o ano de 2003. Nesse mesmo ano, uma mulher foi assassinada pelo esposo em Nova Monte Verde, uma pequena cidade do extremo norte mato-grossense. Antes, ela foi à delegacia em busca de ajuda, mas recebeu do escrivão a resposta “você está assistindo muita novela;” era uma clara referência à personagem Raquel da novela Mulheres Apaixonadas. Nunca me esqueci desse caso, foi o primeiro homicídio em que trabalhei. Após a Lei Maria da Penha em 2006, mulheres vítimas de violência passaram a ser acolhidas nas delegacias de polícia, seja com medidas protetivas, seja com inquéritos policiais.
Com base na revolução trazida pela lei Maria da Penha, acredito que o direito penal, ultima ratio, possa inibir mais comportamentos masculinos tóxicos. Refiro-me, principalmente, ao movimento Red Pill, cujas premissas, bastante divulgadas na Internet, colocam as mulheres em uma posição de inferioridade em relação ao homem, classificando mulheres em tipos, mais ou menos valiosos. Essa ideologia é perniciosa, inclusive porque nós, homens, principalmente na adolescência e juventude, buscamos a adequação ao julgamento social de outros homens. Atribuo à adolescência, com suas bravatas e amigos, parte significativa dos preconceitos masculinos que me leguei e que ainda tento desconstruir.
2. Desde Rousseau, no Emilio ou Da Educação, muitos de nós acreditam na formação de um ser humano, criança e adolescente, justo e bom através da educação, apesar da sociedade corrupta.
É a ideia segundo a qual a educação estimula um ser humano virtuoso, o desenvolvimento de uma bondade humana natural, inata. Não é incomum ouvir, mesmo de amargurados, possuir esperança na educação.
Mas se ainda há tantos sinais de masculinidade desviante entre nós, com taxas expressivas de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios masculinos, além de vícios e doenças, por que não existe um grande programa nacional e programas estaduais para enfrentar a masculinidade tóxica nas escolas? Essa agenda, robusta, vai muito além dos recursos atuais disponíveis aos profissionais de educação, já bastante sobrecarregados. Por que não formatar um programa assim, focado na igualdade entre homens e mulheres conforme o disposto na Constituição Federal, com atividades presenciais e virtuais, apresentações e palestras, redações e debates? O bom é que já existem experiências muito interessantes para subsidiar um programa do tipo, inclusive em sites e perfis da Internet como o Papo de Homem.
3. As artes e a literatura podem ser aliadas da família e do Estado para a redução da masculinidade tóxica. Forma de expressão subjetiva, as artes desenvolvem habilidades interculturais, mudando a interação das pessoas com o mundo, e combatem preconceitos, estimulando a compreensão das emoções. Reflexão, equilíbrio, mudança… As artes, de um modo geral, podem ser um veículo importante para a transformação masculina.
E as histórias, então. Acho difícil ler Flicts, o primeiro livro infantil do Ziraldo, uma fábula sobre o bullying, e ignorar a importância da autenticidade, um valor importante para o adolescente se distanciar de práticas machistas quando sob a influência de um grupo. Acho difícil ler Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e ignorar a opressão masculina na violência, no sexo e no álcool. Acho difícil ler Flor de Gume, de Monique Malcher, e ignorar a força destrutiva de um pai sobre uma filha. Quase sempre as mulheres não têm a opção!