Ser dono do próprio negócio está cada vez mais difícil. Se não bastasse a elevadíssima carga fiscal de nosso país e os riscos inerentes aos próprios empreendimentos, os sócios de empresas vem sendo obrigados a conviver diariamente com a insegurança jurídica causada por decisões conflitantes do Poder Judiciário, notadamente, quando o assunto é a responsabilização pessoal destes por dívidas de natureza tributária da pessoa jurídica.
Neste difícil tema, polêmico há anos, observamos ao longo do tempo o esforço de nossos Tribunais ao tentar dar a melhor interpretação às disposições do Código Tributário Nacional que regulam a matéria (artigos 134, VII e 135). Contudo, as constantes modificações de entendimentos, fomentadas pela alteração das composições de julgamento e seus membros, estão trazendo prejuízos flagrantes à sociedade que se encontra carente de uma referência jurisprudencial paradigma a todos aqueles que se aventuram na árdua missão de terem seu próprio negócio.
Atualmente, é certo que as tentativas de harmonização dos julgados pelo STJ restaram infrutíferas, mormente porque este mesmo órgão imbuído de tal missão, possui entendimentos diversos entre suas próprias Turmas e Seções, em que pese tenham sido julgados processos sob o manto dos recursos repetitivos (que visam delimitar alguma posição sobre o tema). Este efeito multiplicador de incerteza, especialmente para o assunto em voga, vem sendo extremamente danoso aos empresários na medida em que decisões conflitantes entre si foram espalhadas pelos muitos Tribunais do país, gerando preocupante insegurança jurídica em um tema relevantíssimo para a ordem econômica brasileira.
Nos parece claro que a ausência de entendimentos judiciais consolidados, que referenciem determinada posição, afeta sobremaneira os investimentos privados, a realização de negócios e o desenvolvimento de institutos que foram criados pelo Governo justamente para fomentar a livre iniciativa empresarial. Como desenvolver, por exemplo, a recém criada “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI”, se não se sabe ao certo se esta realmente segrega, na prática, o patrimônio do sócio, pessoa física, da pessoa jurídica, para fins fiscais? Como incentivar sociedades limitadas, se por entendimentos do STJ, pode o sócio responder solidariamente pela dívida da empresa, bastando para tanto, constar seu nome na Certidão de Dívida Ativa?
Portanto, antes de mais nada, vemos como fundamental que o Poder Judiciário, notadamente o STJ, posicione-se em definitivo quanto às muitas questões que decorrem do tema “responsabilização do sócio por dívidas da empresa”, vez que se trata de assunto recorrente em quase todas execuções fiscais.
Na prática, as situações são as mais diversas, como por exemplo, a responsabilização de sócios: (a) figurantes nos contratos sociais; (b) minoritários; (c) sem poderes de gestão; (d) que não estavam sequer na sociedade quando a dívida foi constituída; (e) retirantes; (f) menores incapazes para atos da vida civil; (g) que não deram causa à dissolução irregular da empresa, dentre outras. Ou seja, situações que, no mais das vezes, justificam a exclusão legítima do sócio das execuções fiscais.
Apenas para lembrar, o STJ inicialmente firmou entendimento de que, a responsabilização dos sócios quanto a dívidas da empresa somente poderia ocorrer quando provado previamente pelo fisco que o mesmo havia agido com dolo ou culpa e ainda, que teria afrontado a lei e/ou o contrato social ou agido com excesso de poderes.
Posteriormente, sobreveio o perigoso entendimento (hoje mais aplicado) de que, se o nome do sócio estivesse constando na Certidão de Dívida Ativa (CDA), este, por presunção legal, já seria co-responsável direto pela dívida da empresa, de tal sorte que só se livraria do encargo demonstrando (por sua conta e risco) que não agiu com dolo e culpa.
Com todo o respeito ao nosso Tribunal da Cidadania, é difícil entender o posicionamento adotado na medida em que, fixou-se o registro na CDA (atividade feita exclusivamente pelo credor interessado !!!) como paradigma para estabelecer o ônus da prova nos processos de execução, sem que fossem estabelecidos também os critérios a serem observados pelas Fazendas Públicas para inclusão ou não do nome dos sócios nos referidos documentos.
Não é preciso dizer que esta “lacuna” no entendimento jurisprudencial, fez com que o fisco, no mais das vezes, incluísse nas CDAS, indistintamente, o nome de todos os sócios da pessoa jurídica na condição de coobrigados, tornando estes, a seu exclusivo critério, solidários à dívida em desprestígio das disposições do Código Tributário Nacional. O órgão julgador, neste caso, limitou-se a sustentar que a CDA possui presunção de certeza, liquidez e exigibilidade, conforme a Lei das Execuções Fiscais e que, por isso, seria instrumento hábil para inverter o ônus probandi.
Vale dizer, ao credor fiscal foi concedido o benefício de executar a dívida diretamente da empresa e do sócio (em caráter solidário), sem que tenha sido obrigado a demonstrar o seu direito, o que de antemão, nos aparenta afrontar o artigo 333, I, do Código de Processo Civil, assim disposto: “Art. 333 – O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito”.
A questão ganhou ares de drama quando o mesmo STJ, por meio da Súmula 393, restringiu a apresentação das defesas preliminares dos sócios (que independem de qualquer garantia da dívida), aos casos onde a prova fosse feita de plano. Dessa maneira, o sócio já acometido com a obrigação de provar sua “inocência” perdeu também, a oportunidade de defender-se sem o ônus da garantia (sem ter que nomear bens pessoais à penhora), nos casos onde é preciso a elaboração de provas de maior complexidade.
Nesta seara eminentemente processual, alguns magistrados mais flexíveis adotaram o entendimento de que as defesas prévias dos sócios (tecnicamente chamadas de Exceção de Pré-Executividade) poderiam ser apresentadas normalmente para discutir a ilegitimidade dos sócios nos processos de execução, conquanto estas possuam, de pronto, todas as provas necessárias para elidir a responsabilidade da pessoa física. Nestas situações, a aceitação das defesas vem sendo proporcional à complexidade da prova.
Se, por exemplo, o sócio não figurava no contrato social no momento em que os fatos geradores do tributo ocorreram ou ainda, que este nunca teve poderes de gerência, a prova revela-se fácil o suficiente para ser trazida aos autos de uma só vez. Por outro lado, se a prova for no sentido de que inexistiu dolo ou fraude da administração, e que as dívidas fiscais decorreram exclusivamente da incapacidade financeira da própria empresa em saldar a tributo, a prova inicial tende a ser prejudicada por potencialmente, envolver perícias contábeis e outras aferições. Nesta última situação, pelo entendimento atual do STJ, as Exceções de Pré-Executividade, com alto grau de recorrência, não vem sendo aceitas.
Deste imbróglio todo que tentamos resumir, é preciso lembrar também que o mesmo STJ, já decidiu em algumas ocasiões que o nome do sócio só poderia constar da Certidão de Dívida Ativa (ensejando sua responsabilidade direta), caso este, tenha tido a oportunidade de participar previamente do processo administrativo que culminou no débito que está sendo executado. Ou seja, caso o sócio tenha figurado como parte da autuação fiscal inaugural, ainda que na condição de co-responsável, o que propiciaria sua defesa particular naquele primeiro instante. A despeito de decisões controversas sobre o tema em vários tribunais do país, a tese é relevante por possibilitar a realização de prova pré-constituída útil à defesa do sócio.
Muito interessante foi o posicionamento da Ministra Eliana Calmon quando do julgamento monocrático, de sua lavra, no AgRg no Recurso Especial 1.104.109 – RJ, em 03 de setembro de 2009. Na ocasião, a Ministra referindo-se à possibilidade de responsabilização direta do sócio pela inclusão do nome do mesmo na CDA, pontuou: “Na oportunidade, lembro-me bem, disse que considerava a tese perigosa, pelos reflexos que pudesse ter quanto à interpretação do artigo 135, com entendimento já sedimentado. O pensamento de todos que acompanharam o relator foi no sentido de que o fisco só incluía o nome do sócio na CDA depois de realizar apuração na esfera administrativa, dando ao sócio a oportunidade de defesa. Enfim, foi com base nesse pressuposto que se votou a nova tese que em princípio se harmonizava com o artigo 135 do CTN.”
Com efeito, verifica-se da decisão da ilustre Ministra que o contexto que culminou entendimento atual do STJ não foi transposto à conclusão final do julgado referência (recurso repetitivo), de modo que, restou livre a interpretação do fisco para registrar o sócio na CDA. No caso, sustentou a Ministra em sua decisão que só seria possível validar a presunção de legitimidade da CDA caso o fisco fundamentasse sua pretensão na existência de processo administrativo prévio, no qual se debateu a responsabilidade do terceiro, ocasião em que, aí sim, seria correta e justa a inversão do ônus da prova. De outro modo, caberia ao fisco sempre a demonstração de que o sócio agiu em infração à lei ou com excesso de poderes.
Essa é uma importante linha de pensamento que configura arma fundamental na defesa dos sócios em execuções fiscais, sendo mecanismo hábil, inclusive, de ser demonstrado em sede de defesa prévia, a qual requer provas mais “diretas” e “objetivas”.
Vê-se, portanto, a complexidade do assunto e a riqueza de detalhes do tema. Muito há de ser discutido e é missão da sociedade ajudar o Poder Judiciário na difícil incumbência de harmonizar o entendimento em criação, seja trazendo aos debates processuais todos os argumentos que são passíveis de apreciação e que justificam a defesa dos sócios, seja pela demonstração da importância e relevância destas decisões para o mecanismo econômico de qualquer nação.
Carlos Montenegro é advogado societarista e tributarista em Cuiabá