Para permitir a colonização do Brasil e do Mundo Movo a Ordem de Cristo, orientada pelo interesse econômico e mercantilista de Portugal, decretou em 1500 que não havia pecado do lado de baixo do Equador. Cabral estava, assim, liberado para fazer o que bem quisesse com nosso povo (nossos antepassados índios): pilhar, escravizar, submeter, torturar, matar… Não foi tão necessário, uma vez que nossos indígenas viram nos fortes e tecnológicos dominadores a encarnação na terra de seus deuses.
Depois de verificada a não-resistência, então a igreja católica muda a regra e manda para cá a Companhia de Jesus. Foi reinstituído o pecado, e nossos pagãos (já não mais apenas índios, mas os negros também) passaram a ser catequizados pelos Jesuítas para serem escravos civilizados.
Essa passagem é fundamental em nossa história, e determinaria um traço cultural presente entre nós nos dias atuais: o engodo pode ser uma solução simples e eficaz para burlarmos a lei.
Esse ensinamento, por exemplo, foi bem utilizado por nossos monarcas no século IX. Para aliviar a pressão da Inglaterra contra o tráfico de escravos, a Coroa começou a decretar leis sem efeito. Daí surgiu, em 1830, a expressão “para inglês ver”, uma vez que as leis não eram para ser cumpridas, mas apenas para iludir os ingleses.
Variações mais modernas desses dois episódios estão presentes em Macunaíma (o herói sem caráter criado por Mário de Andrade em 1928) e no Zé Carioca (o papagaio paulista-americano criado pela Disney em 1942 como um esforço de aproximação – para dominação ideológica – entre Brasil e EUA, mas que acabou, na versão paulista do Grupo Abril, esteriotipando o carioca como malandro).
Essa visão foi convertida em valor nacional e incorporada por nosso imaginário (ou inconsciente coletivo, como dizem os psicólogos), traduzido no “jeitinho brasileiro”, a Lei de Gerson patriótica.
As eleições brasileiras são um momento particular e especial de verificação dessa visão e desse valor. Candidatos burlam a lei calcados no consentimento dos eleitores, afinal, ninguém compra voto se não houver quem os venda. Ambos, comprador e vendedor, escudados na impunidade vigente e absoluta.
Ou melhor, quase absoluta. As decisões recentemente tomadas pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Mato Grosso, cassando parlamentares por compra de votos, representam uma boa nova para a quebra desse estado de espírito.
Independente de quem sejam os personagens (sim, a rigor, se todos os que compram votos fossem cassados, precisaríamos convocar novas eleições gerais, e novas e novas até não restar mais pessoas aptas a se candidatar), com tal postura a Justiça Eleitoral reinventa o pecado abaixo da linha do Equador, e todos aqueles que se acostumaram a viver sem pecado, agora terão que rever suas atitudes.
Gosto de pensar que doravante todos deverão acreditar que as leis são para valer, e não apenas para inglês ver. Que a sociedade, embora não percebamos, tem evoluído para uma posição de cobrança das instituições e dos entes públicos como nunca se viu antes no Brasil. E que num futuro não muito distante, algumas práticas estarão superadas, ainda que em seu lugar surjam outras de mesmo teor, mas, pelo menos, com nova roupagem. Pode ser um sonho. Mas, o que seríamos sem os sonhos, afinal?!
E quando digo todos, incluo aí todos mesmo: candidatos, eleitores, imprensa e mídia, Estado, aquela parte do Judiciário e Ministério Público que ainda renega seu papel de Jesuítas; e sobretudo os cidadãos, que deveriam entender que o maior pecado que podem cometer é exatamente não exercer na plenitude sua cidadania.
KLEBER LIMA é jornalista pós-graduado em marketing e consultor político.