Hoje eu vou falar sobre o Zeca e ele, se quiser, pode até me processar por isso. Por eu falar sobre ele sem lhe pedir permissão, sem que ele me tivesse autorizado a falar sobre ele. Mas eu estou certo de que o Zeca, o meu amigo Zeca, jamais faria algo contra mim, aliás, jamais faria algo contra alguém. O Zeca é boa praça, ou como dizem esses internautas, ele é D+. Amigo de todos aqueles que não dispensarem a sua amizade e àqueles que dispensarem o Zeca nem liga. Que não lhe façam mal já está de bom tamanho. E olha que o Zeca, melhor que ninguém, sabe reconhecer uma amizade, apesar de não saber identificar ódio ou indiferença, sentimentos que fazem sofrer a todos nós, os aparentemente tidos como normais.
Todos os dias o Zeca passa em frente a minha casa e me dá um bom dia de uma forma que só nós dois entendemos. Ele grita: “Zeca!”, como se fosse eu ou outra pessoa anunciando a sua presença. Que nada! É ele anunciando a sua própria, a presença do Zeca.
Então, como já é de rotina, eu apareço: – oi Zeca! Chamo-o de verdade e ofereço-lhe um cafezinho. Ele aceita e começa a rir. E vai rindo gole a gole. Ri, ri e ri. Ri muito. Não se sabe lá do que é que ele ri. E eu o acompanho naquela sinfonia de risadas que me faz um bem danado ao meu espírito e ao meu dia que está começando. Não o convido para entrar porque não há nenhum motivo para que ele aceite o meu convite, uma vez que para ele, naquele momento, basta uma dose de café e muitas doses de risadas.
O Zeca é assim como se fosse algo a mim enviado, logo pela manhã, por Deus, o patrono da sabedoria, para que o meu dia seja inteiro de paz. É por isso que, às vezes, quando algo, alguma turbulência me ocorre e me desassossega, o que é normal a qualquer um de nós, humanos, me vem logo à lembrança a imagem do Zeca. A imagem do Zeca tomando café e dando risada a cada gole.
Outras vezes encontro o Zeca atravessando a rua ou caminhando na calçada, sempre preso aos seus pertences, aos seus valores, que carrega dentro de um saco torcido, boca amarrada e levado ao ombro. Tento fazê-lo perceber a minha presença, mas o Zeca não percebe. Para ele aquele que, pela manhã, toma com ele um cafezinho e dá boas risadas e a pessoa dentro do carro, no trânsito, são pessoas diferentes. Não que ele pense isso, não que ele pense assim. O seu mundo é isso, o seu mundo é assim. E o Zeca segue o seu caminho, o caminho que lhe fora traçado para o seu dia.
Numa outra situação, quando estou a pé, ele me reconhece. Seus olhos brilham, ele se aproxima e, sem nenhuma cisma, num sorriso de cumplicidade, me pede: “tem vinte centavos aí?”. Para minha felicidade, e para a felicidade do Zeca, eu sempre tenho vinte centavos.
O que ele faz com vinte centavos? Guarda para quando passar em frente a um bar e lhe der vontade tomar outro tipo de cafezinho, daquele que faz mal ao seu debilitado organismo e ao seu cérebro praticamente desconectado com o mundo dos princípios morais, ele entrar, pedir, tomar e prosseguir. Para o Zeca que quando toma o seu cafezinho, tanto o preto quanto o branco, e dá boas risadas, o seu mundo é real, muito mais real que o mundo de muitos daqueles que o condenam.
Ontem foi um dos dias em que estive com o Zeca por duas vezes. Pela manhã tomamos cafezinho, mas não demos boas risadas. Notei algo diferente no Zeca. Ele estava sério. Sabia o que se passava, o que sentia, mas não revelou e também não deu nenhuma risada. Solidário à minha pressa, que não esperava, apressou-se também em engolir o cafezinho. A tarde, por volta das 15 horas, ele me reapareceu: “tem vinte centavos aí?”. Novamente a pressa não me deixou esperar para conferir. Não Zeca, não tenho!
Algumas horas depois, já no cair da noite, passo apressado em frente a um desses locais que compram latinhas de cervejas e refrigerantes para reciclagem e vejo o Zeca esperando, silenciosamente, ao portão com o que me pareceu duas ou três latinhas dentro de uma sacola de supermercado. Olhei-o e, novamente, a pressa me impediu que parasse para cumprimentá-lo, para dizer oi Zeca.
Hoje não o vi. Ele não apareceu para tomarmos o cafezinho e darmos boas risadas. A última imagem que tenho do Zeca, gravada e cravada em minha mente, e que está me deixando desassossegado no trabalho, não é a imagem de um Zeca com o seu saco de pertences levados ao ombro, mas a imagem de um Zeca com uma sacola de supermercado com duas ou três latinhas, silenciosamente esperando para, quem sabe, trocar por 20 centavos.
Estou com maus pressentimentos. O Zeca deve estar bem. Mas… E os outros Zecas? Todos os outros Zecas? “Eles querem tão pouco e nós lhes negamos” disse certa vez Samuel Warner, lembrado por Paulo Francis.
Eu não tinha vinte centavos. Talvez até tivesse. O Zeca não vai me condenar por isso, mas ele poderia, pode e deve me processar por isso, se ele quiser.
Carlos Alberto de Lima é jornalista em Alta Floresta