Neste mês (agosto/2014), estarrecidos, observamos a divulgação de minuta de Resolução sobre um novo conjunto de regras do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), este, pois, alicerçado em evidente impeditivo à utilização da religião no trato do dependente químico. As referidas normativas, então legitimadas pelo Governo Federal e pelo presidente do Conad, Vitore Maximiano, que busca impedir doutrinas religiosas na Recuperação de Dependentes de Substâncias Psicoativas.
O primeiro Senador a se levantar a respeito da tendência impositiva do Governo foi o Senador Magno Malta, asseverando o quão prejudicial se mostra a limitação imposta, pela própria realidade constatada nas instituições cadastradas. Afinal, quase a totalidade das clínicas de tratamento está vinculada à religião. Os cadastros apontam que as organizações não governamentais (ONGs) envolvidas e comprometidas com a recuperação, costumeiramente, são estabelecimentos que funcionam como campanha solidária das religiões evangélicas, católicas, espírita dentre tantas outras vertentes que, costumeiramente, estão voltadas ao apoio social e à doação de si ao outro, como elementar à vida.
Alguém questionou qual seria o impacto desse ato do governo às comunidades? Ainda, passariam as Organizações Não Governamentais a receberem ordens limitativas dos agentes de Estado às suas crenças, liberdades de manifestação, orientações fundantes e motivadoras, estas, pois, quase sempre em ações solidárias? Deixariam de ser Não Governamentais? Estamos diante de um Estado intervencionista? Como podemos classificar essa orientação do Estado laico? Podemos ressaltar que o fundamento é democrático? O que de fato simboliza a democracia?
Devemos primeiramente questionar o que significa um Estado laico. Estado laico significa um país com uma posição neutra no campo religioso. Também conhecido como Estado secular, o Estado laico tem como princípio a imparcialidade em assuntos religiosos, não apoiando uma orientação específica, ou discriminando/proibindo manifestações religiosas aos seus cidadãos. Isso porque o Estado laico defende a liberdade religiosa. Um país laico é aquele que segue o caminho do laicismo, uma doutrina que defende que a religião não é fundamento para as ações do Estado. Afinal, o Estado é laico, mas as pessoas não são… O Governo estaria impondo a laicidade a todos os humanos ou, de forma mais perceptível, estariam seus membros impondo uma postura Anti-Deus?
Pelo que se vê, não há como sustentarmos a orientação da Minuta de Resolução do Conad, sob pena de ofendermos todos os princípios fundantes, bem como direitos e garantias fundamentais e, ainda, alicerçarmos um Estado Intervencionista Extremo ou de posições extremistas de uma pretensa Democracia Anti-Religiosa. Pois bem. Primeiramente, o Estado, conforme ordem constitucional vigente, em seu art. 1º. possui a seguinte delimitação: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.
De igual forma, o parágrafo único, preceitua que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Logo em seguida, institui-se que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são (art. 3º da CF): I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ao final, nos alicerces fundamentais da República brasileira, temos que o país é regido pelos seguintes princípios, nas relações internacionais: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Pelo que se vê, nos itens destacados, a Resolução deixou de nortear seus horizontes normativos com a base de todo o sistema jurídico, bem como de justiça, então vigentes.
Mas, a situação não se encerra na ordem dos princípios fundamentais da República. Temos, ainda, a evidência de que a minuta de Resolução do CONAD ofende também os direitos e garantias fundamentais do cidadão, então alicerçados no art. 5º, caput e incisos da CF/88. São eles: II (ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei); VI (inviolabilidade da liberdade de consciência e crença); VII (assegurar a prestação de assistência RELIGIOSA nas entidades civis e militares de internação coletiva); e VIII (impede a privação de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política).
Ainda, podemos observar que a tendência restritiva da minuta de resolução ofende a ordem dos direitos sociais, visto que estes são de seara inclusiva e não de exclusão, sendo imprescindível a orientação assistencial prescrita à equivalência da humanidade dos viventes. Afinal, estamos falando de seres humanos doentes, zumbis, comumente esvaziados em suas existências… Portanto, todos os valores humanos, sejam ou não religiosos, são bem-vindos à restauração dessas vidas. Não percamos de vista os próprios dados científicos. Eles são mestres em nos detalhar o caos da saúde pública, da violência, da fragilidade da segurança pública, da perversa condição dos jovens dependentes, bem como dos infantes que nascem nesses lares.
De igual forma, os acidentes costumeiramente vivenciados são notas do quão aberrante é a vulnerabilidade do humano, além de outras mazelas sociais potencializadas por esse terrível mal. Mas, além da ofensa aos princípios fundantes da República Federativa do Brasil, as normativas da resolução desconsideram outras vertentes essenciais à democracia: A não Intervenção. Essa, inclusive, é a perspectiva dos arts. 34 e segs. da Constituição Republicana. O referido princípio, da não intervenção, orienta o Estado ao respeito às diversas ordens de pensamento e crença, não tolhendo suas expressões, exceto quando desconsiderarem a equivalência existencial de todos os seres humanos ou quando servirem à tentativa de se impedir ou eximir-se à obrigação legal imposta de forma indistinta (inciso VIII do art. 5º. da CF).
Pelo que se vê, a religião, seja ela qual for, como base restaurativa, está de comum acordo com a orientação constitucional, ou seja, é mais um mecanismo ao fortalecimento da vida humana e sua prevalência. Portanto, de fácil leitura vê-se a inconstitucionalidade da resolução proposta à “inovação normativa”. Mas, para além desses alicerces, devemos buscar as doutrinas dos direitos humanos, de ordem internacionalista e de perspectiva de máxima defesa à vida. Afinal, ainda que sustentemos a inexistência de hierarquia no elenco dos direitos humanos, não podemos deixar de esclarecer que quando a vida deixa de existir, todos os demais direitos da pessoa perdem o alicerce que delimitam a sua essência.
Nessa ordem de ideias, não poderia deixar de circunscrever o pensamento sustentado nas orientações do filósofo John Finnis. De igual forma, busco o fundamento mor, nas obras de Hannah Arendt. Eles, pois, passam a ser o embasamento filosófico, da presente orientação conclusiva. John Finnis é considerado o maior jusnaturalista (teórico do Direito Natural) contemporâneo e possui amplo reconhecimento mundial. Seus livros principais já foram traduzidos em diversas línguas. Finnis desenvolve a perspectiva ética como característica do entendimento do bem, ou seja, da razão prática do que vem a ser bom para os seres humanos. Para ele, conhecer os fins que explicam as ações humanas é como experimentar a nossa natureza pelo lado interior, ou seja, buscar exatamente os objetos que justificam as nossas ações em última análise.
São relevantes, nessa empreitada, as respostas possíveis à pergunta "Porquê?" Ou seja, qual a razão maior das nossas ações. Nessa diretriz, podemos esboçar um elemento bastante preciso às atuações das instituições religiosas no tratamento do indivíduo dependente: a sua recuperação. Atua-se, nesses casos, de forma multidisciplinar e plural, com perfil psicológico, metódico e ético à percepção de um valor humano inegociável e, portanto, capaz de libertar o indivíduo das mazelas das substâncias psico-ativas. Assim, pela máxima de Finnis, o bem evidente da ação, legitima a conduta pela própria finalidade almejada. O ser humano, nessa condição, não é meio e sim um fim em si mesmo. A religião, sim, é utilizada como meio ao alcance do humano e sua preservação.
A teoria de Finnis vem ganhando corpo no Brasil, principalmente após 2007, quando ele esteve em Porto Alegre/RS proferindo palestras na Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Nesse mesmo ano foram lançadas traduções brasileiras de suas obras (Direito Natural em Tomás de Aquino e Lei Natural e Direitos Naturais). A sua teoria está voltada aos bens humanos objetivos, pré-morais (para além do campo meramente moral ou seja, não são totalmente englobados pela perspectiva da moralidade), portanto são compreensíveis como auto-evidentes, incomensuráveis (não possuem medida comum) e são fins em si mesmos (não são meios para outros fins). A vida, a saúde e a dignidade humanas são exemplos nítidos dessa perspectiva.
Portanto, o atendimento de restauração, promovido pelas Organizações Não-Governamentais são mecanismos de uma orientação para o alcance desses bens, utilizando-se da crença, de evidência moral ou pré-moral (valor em si) para o estabelecimento de uma meta: salvar vidas. Já em Hannah Arendt, o seu primeiro livro desenvolvido Conceito de Amor em Santo Agostinho: Ensaio de uma interpretação filosófica (sua tese), enfatiza o valor da vida, não como um caminhar para a morte, mas para a evidência de sua magnitude: nascer para o próximo. Porque, ao final, somos todos co-partícipes de uma história compartilhada e acrescida. Nascemos para essa vivência.
Mas, em realidade, o que mais enfatiza o fundamento do presente artigo e, portanto, simboliza a conclusão almejada, é o seu livro as origens do totalitarismo. Esse livro publicado por Arendt, pela primeira vez, em 1951, consolida a autora com o prestígio de uma das maiores pensadoras ou filósofas políticas já existentes no quadro de todos os filósofos ou pensadores até a atualidade. As origens do totalitarismo nos mostra o nascedouro de um Estado extremamente intervencionista, com a banalização do terror, manipulação das massas e acriticismo face à imagem ou mensagem atrelada ao Poder.
Sabemos onde isso levou a humanidade e das terríveis cifras humanas da mortalidade alcançada pelo mal, diante da “concepção de sua naturalidade ou cientificidade purificadora”. Nessa ordem, Arendt desenvolve a perspectiva da solidão, apesar de organizada pelas massas. Sete anos depois, a mesma autora publica a condição humana, obra que enfatiza a vida ativa em contraponto à perspectiva artificial Muitas outras obras foram publicadas por Hannah Arendt, destacando-se, ao final, Eichmann em Jerusalém. Aqui, vejo a magnitude do pensamento de Arendt, afinal, estamos voltados à análise existencial e à nossa motivação primeira? Estamos de fato conscientes das realidades sociais e da sua grandeza?
Mais claramente, observando a sociedade, podemos dizer, por exemplo, que em todos os julgamentos criminais de pós-guerra, de Nuremberg a Abu Ghraib, há uma presunção de que os soldados devem saber que eles estão errados, mesmo se eles pensassem que estivessem dentro da ‘legalidade’. A grande fundamentação dos direitos humanos pressupõe essa capacidade de julgamento, que nós estamos hábeis a reconhecer em nossas ações independentemente de uma norma positiva ou direito, visto que se trata de algo inerente, fisiológico e necessário à própria existência humana. Nesse aspecto, segundo Arendt, uma grande contribuição foi dada pelo Nazismo sobre esse movimento de insensibilidade da consciência em relação à moralidade. Viveu-se o absurdo de que contanto que as normas fossem socialmente aceitas, ninguém duvidava dos motivos que levavam a acreditar nas mesmas. Não se perguntava por que fazer aquilo (!).
Portanto, quando se chega a esse nível de crise moral na sociedade, precisamos olhar para nós mesmos… Nesse sentido, Arendt aprofunda na discussão ao dizer que a moralidade depende, primariamente, da relação da pessoa consigo mesma. É a inerência, pois, da nossa condição: a humanidade. É o que precisamos ofertar nas tristes realidades de vida desses zumbis ou mortos-vivos, em decorrência da dependência química. Chega de revivermos Hitler ou ditaduras de argumentos desprovidos de conteúdo ético-moral. Afinal, como bem dizia Kant, a penalidade de não seguir o imperativo categórico seria o fato de sermos forçados a desprezar a nós mesmos, uma vez que o nosso próprio auto-respeito estaria em causa diante dessa ação.
Arendt faleceu em 1975 e foi sepultada em Bard College, Nova York, nos Estados Unidos. Contudo, o seu pensamento ainda nos mantém diante da imprescindível necessidade de respostas à razão primeira de nossas ações. Portanto, a ilegitimidade da Resolução do Conad se mantém diante de todos os horizontes inteligíveis: ofensa aos princípios fundamentais; ofensa aos direitos e garantias fundamentais; ofensa aos direitos sociais; ofensa ao princípio da não intervenção; ofensa às diretrizes de liberdade das organizações e de suas crenças e bases solidárias; ofensa às máximas de interpretação valorativa, trazidas tanto Finnis como pela perspectiva racional equacionada por Hannah Arendt. Possamos todos vislumbrar nas entrelinhas dos argumentos a tendência controladora do discurso. Estejamos preparados, em consciência.
Amini Haddad é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso
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Marcos Machado é Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso-TJ/MT
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