Por que insistimos em rotular de acidentes, tragédias ocorridas no trânsito? Os dicionários, sobre acidentes, trazem a seguinte definição: o que é casual, fortuito, imprevisto – ou seja, acidente é algo que foge do nosso controle, que não se pode prever ou evitar. Será mesmo que os acidentes de trânsito se encaixam aÍ?
Indo direto ao ponto, como podemos chamar de acidente uma tragédia provocada por uma besta quadrada que enche a cara e sai dirigindo? Um imbecil invade a pista contrária, mata pessoas e tudo não passa de um acidente? Como podemos dizer se tratar de acidente quando um zé ruela fura o sinal vermelho, não respeita faixa, dirige em alta velocidade e atropela pedestres?
Como podemos chamar de acidente uma colisão ou coisa parecida, causada pela perda dos freios ou outro problema qualquer, que seria facilmente evitado, por uma simples manutenção de rotina? Imagine a cena: um cidadão inapto a dirigir, ou de pouca experiência pega um carro em condições duvidosas e vai para a estrada em alta velocidade. Será que ele não sabe que está colocando a vida dele e a de outros em perigo? O estrago que ele provocar deve ser chamado de acidente? Veja, acidente é algo casual, que não se pode prevenir. Em todos os casos citados seria possível prever e evitar. Ou seja, não é acidente. É tragédia anunciada.
Segundo a Polícia Rodoviária Federal, 90% dos "acidentes" de trânsito ocorrem por imprudência ou imperícia de quem está ao volante. Apenas 10% ocorrem por outros motivos que fogem ao alcance do motorista. No aglomerado Cuiabá/Várzea Grande, somente no primeiro semestre deste ano, segundo dados do Detran, morreram 113 pessoas. A maioria, jovens de até 27 anos. Se para cada morto, temos seis sequelados (dados da Abramet), veja a que quadro aterrorizante chegamos em meio ano. É só fazer as contas. Isto somente aqui, nesse nosso pequeno universo de duas cidades de porte médio.
Agora imagine o total do país. São 37 mil mortes e mais de 200 mil sequelados. Muitos, sem a mínima condição de voltar a viver de forma independente. Ou seja, se tornam um peso para as famílias, para a sociedade e para o Sistema de Saúde. Não parece cruel, é cruel. Sem eufemismos, sem rodeios, direto ao ponto!
Para efeito de comparação, temos no país, em média, 18 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. Nos EUA, com frota quatro vezes maior e 100 milhões de habitantes a mais, a média é de 13. Em Cuiabá, com 580 mil habitantes e frota de 250 mil veículos, a média chega a 32. Chamar de acidentes fatos que geram esses números, não passam de uma forma inconsciente de minimizar o problema e abrandar a culpa de gente incauta, sem juízo, sem respeito pela vida e pelo próximo, mas com uma grande certeza: a da impunidade.
Se levarmos em conta que apenas 3% dos condutores habilitados cometem 50% das infrações e de forma contumaz, não será tão difícil assim, detectar e eliminar boa parte do problema. Basta que as leis e a Justiça permitam. O Código de Trânsito está passando por revisão e promete endurecer o jogo, mas é preciso mexer também no Código Penal e tratar como criminoso quem comete tais condutas.
André Michells é jornalista, assessor de imprensa do Detram-MT