Nada a objetar quanto à decisão do Tribunal Superior Eleitoral que considerou como sendo do Partido, e não do eleito, o mandato parlamentar. Trata-se de uma posição compatível com o sistema normativo e fortalecedora dos partidos políticos. Portanto, juridicamente correta e politicamente adequada.
A questão, agora, é saber a partir de quando se aplica a solução mencionada. Entro nessa discussão para expor algumas idéias, tendo em vista o julgamento de mandados de segurança impetrados contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados, que não declarou a vacância do cargo de parlamentares que, após a eleição, mudaram de partido. Expressarei razões de ordem jurídica que se ligam umbilicalmente a razões de natureza política.
Começo lembrando que o valor supremo da Constituição Federal é a segurança jurídica que deverá servir de norte para qualquer interpretação de fatos concretos. Aliás, o Direito existe para regular as relações sociais entre pessoas e instituições. Em outra palavra, o Direito estabelece as regras do jogo na sociedade por ele regulada. Quanto mais estável a regra, maior a estabilidade social. Por isso mesmo é que se costuma dizer que não se podem mudar as regras de um jogo jogado. Esta fórmula popular de dizer respalda-se na Constituição que cria instrumentos como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Estes temas são considerados fundamentais para manter a tão apregoada estabilidade social. São direitos catalogados como individuais e imutáveis, nos termos da Carta Magna.
Vamos tomar o caso do ato jurídico perfeito. Segue-se uma obviedade: aperfeiçoa-se o ato praticado debaixo de um sistema normativo que fotografa o instante de sua aplicação e o torna juridicamente acabado, imodificável. Esta frase faz supor que o ato foi praticado sob um sistema jurídico inatacável, constitucional e compatível com a normatividade vigente. Nesse ponto, cabe indagar: aperfeiçoa-se juridicamente um ato que vem sendo praticado reiteradamente, e que depois, tempos depois, enfrenta outra interpretação do direito vigente, eliminando, portanto, o suporte jurídico dos atos então praticados?
Se a conclusão for negativa, todos os procedimentos decorrentes daquele ato que só aparentemente teria se aperfeiçoado, também são anuláveis. Imaginem, desde já, a confusão. E, para confundir ainda mais, voltemos ao caso da infidelidade decorrente da mudança de partido político. As mudanças partidárias ocorreram por ocasião de todas as eleições realizadas após a Constituição de 1988, quais sejam as de 1990, 1992, 1994, 1996, 1998, 2000, 2002, 2004 e 2006. Presidentes da República, governadores, prefeitos, senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores foram eleitos nessas ocasiões. Praticaram milhares de atos legislativos e administrativos. Mais ainda: à vista de mandatos anteriores, muitos os concluíram remanescendo todos os atos por eles praticados, embora tenham mudado sua filiação partidária sob o império de normatividade em que não havia a interpretação que, agora, o Tribunal Superior Eleitoral deu ao tema da fidelidade partidária.
É claro que, ao usar estes argumentos, bem sei que eles seriam aplicáveis ao caso das ações de inconstitucionalidade quando também, decretada esta, os atos anteriores haveriam de continuar válidos. É evidente que, nesse caso, o STF terá sempre discricionariedade decisória para definir se os efeitos serão desde então ou a partir do acórdão. Aliás, a presunção é a da constitucionalidade dos atos normativos. No caso em debate, trata-se de interpretação que veio à luz depois da prática de dezenas de atos por aqueles que, em rigor, não poderiam praticá-los.
Se a decisão do Supremo decretar a perda do mandato daqueles que por vinte anos se elegeram e mudaram sua filiação partidária, poderá instalar-se tumulto jurídico no País. Se até no caso das medidas provisórias rejeitadas pelo Legislativo (até por inconstitucionalidade), os atos praticados continuarão válidos merecendo regulamentação por decreto legislativo, por que não considerar válida a forma eleitoral utilizada até o momento, aplicando-se a nova interpretação apenas para o futuro?
O que está em jogo é a segurança jurídica de natureza institucional. Finalmente, convém lembrar que o STF, ao lado do Legislativo e do Executivo, também governa. Costuma se até dizer que o Supremo é um Tribunal político. Não o é no sentido vulgar, já que essa Corte aplica o direito vigente, mas o é no sentido de que, ao aplicá-lo, terá como vetor a harmonia institucional do País e a segurança das relações entre os indivíduos e as instituições.
Michel Temer: é advogado, professor de Direito Constitucional e deputado federal pelo PMDB-SP.
*Artigo publicado no Correio Braziliense em 2/10/2007]