São 1.780 quilômetros de estrada atravessando uma das regiões mais ricas da Amazônia e do País em recursos naturais, potencial econômico, diversidade étnica e cultural, com a presença de biomas como a Floresta Amazônica, o Cerrado e áreas de transição entre eles, além de bacias hidrográficas importantes, como a do Amazonas, do Xingu e Teles Pires-Tapajós. A rodovia BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), foi aberta nos anos 1970 como mais uma das grandes obras de infra-estrutura projetadas pela ditadura militar para pretensamente tentar integrar a Amazônia à economia nacional.
O asfaltamento da estrada ainda não foi concluído – restam ser pavimentados 953 quilômetros entre Nova Mutum (MT) e Santarém (PA) –, mas tornou-se, nos últimos anos, reivindicação de vários setores econômicos regionais, os quais alegam que a obra poderia facilitar e baratear o escoamento da produção agropecuária do norte do Mato Grosso, um dos pólos mais dinâmicos do País no cultivo de grãos, em direção ao rio Amazonas. Além disso, segundo empresários e políticos, a pavimentação da rodovia também poderia encurtar o transporte dos produtos eletro-eletrônicos produzidos na Zona Franca de Manaus até os grandes centros da região Sul. Por outro lado, agricultores familiares reivindicam políticas e ações que se antecipem à obra para garantir os benefícios que ela promete.
Por todos esses fatores, o asfaltamento da BR-163 é um desafio para os movimentos sociais, ONGs, instituições de pesquisa, sindicatos e outras organizações da sociedade civil que defendem um modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia.
Apesar da abertura da estrada ter sido finalizada em 1972, com 984 km no Estado do Pará e 772 km no Estado do Mato Grosso, um trecho de 956 km ainda não foi pavimentado. No Mato Grosso, grande parte da rodovia encontra-se asfaltada, porém alguns trechos estão em péssimo estado de conservação. Já os 784 km localizados no oeste paraense, da divisa com o Mato Grosso até a cidade de Rurópolis, nunca receberam asfalto e foram incluídos no projeto atual da obra. Além deste trecho, ainda está previsto o asfaltamento de mais 32 km que ligam o entroncamento com a BR-230 (rodovia Transamazônica) à localidade de Miritituba, nas margens do rio Tapajós, próximo à cidade de Itaituba.
No início da década de 1990, a Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP), de Altamira (PA), elaborou o Projeto Cutia, que tinha o objetivo de consolidar um modelo de desenvolvimento para o sudoeste do Pará que considerasse a dimensão humana, social, cultural, econômica e ambiental. A iniciativa contestava os métodos de implantação de obras de infra-estrutura na região da rodovia Transamazônica, principalmente a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a pavimentação da própria BR-230. O debate do projeto contou com a ampla participação dos produtores familiares.
Em 2001, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) realizou as primeiras discussões e consultas para elaborar um diagnóstico sobre os principais problemas socioambientais também em alguns municípios do sudoeste do Pará. O estudo tinha a intenção de prever cenários para a gestão territorial a partir da possível pavimentação da BR-163 e subsidiar um futuro debate sobre planejamento regional.
Paralelamente, os municípios do Baixo-Amazonas discutiam um plano de desenvolvimento denominado Projeto Tucumã. Coordenado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Baixo Amazonas (CEFT-BAM), tinha como meta estruturar e articular ações de desenvolvimento sustentável para a região com base na agricultura familiar e nos recursos naturais amazônicos, em harmonia ambiental, com equidade de gênero e etnia, contemplando o meio rural e o urbano.
Em 2003, essas mobilizações convergiram e, por meio de várias reuniões e visitas de intercâmbio, foi criado o Fórum dos Movimentos Sociais da BR-163. Inicialmente formado por quatro organizações da sociedade civil (Ipam, FVPP, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Baixo-Amazonas-Fetagri e Prelazia de Itaituba), priorizava uma agenda de eventos regionais no Pará para discutir os rumos do desenvolvimento na região. Posteriormente, foram criados três pólos de influência da BR-163 no Estado, que serviriam como base para os encontros regionais que ocorreriam no final de 2003: o Pólo Transamazônica, o Pólo BR-163 Eixo Paraense e o Pólo Baixo Amazonas.
A preocupação sobre o tema também ganhou espaço dentro de organizações não-governamentais que atuam no Mato Grosso. Entre elas, o Instituto Socioambiental (ISA), que, há dez anos, já desenvolvia projetos na região do Parque Indígena do Xingu e de seu entorno e que, em outubro de 2004, lançou a campanha ‘Y Ikatu Xingu, que tem o objetivo principal de proteger e recuperar as nascentes e as matas ciliares do rio Xingu no Mato Grosso. O Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) e o Instituto Centro de Vida (ICV) também passaram a debater o problema.
Essas instituições articularam encontros regionais com outros representantes da sociedade civil (produtores rurais, sindicatos, professores, pesquisadores e ONGs) para a elaboração de propostas voltadas à gestão das áreas ao longo da rodovia BR-163 no Mato Grosso e das nascentes dos rios Xingu e Araguaia. A mobilização foi apoiada com ativa participação dos sindicatos dos trabalhadores rurais, ONGs e associações locais de Querência, Água Boa, Lucas do Rio Verde e Cláudia, todos localizados no Mato Grosso.
Em novembro de 2003, em Sinop (MT), ocorreu o Encontro BR-163 Sustentável – Desafios e Sustentabilidade ao longo da Cuiabá-Santarém (clique aqui para ler o relatório). Durante o evento, mais de 250 pessoas, entre índios, representantes do Poder Público, de organizações da sociedade civil e pesquisadores, elaboraram uma carta contendo uma série de propostas para ações e políticas de desenvolvimento sustentável para a área de influência da rodovia. A ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, e o governador mato-grossense, Blairo Maggi (PPS), estiveram no encerramento do encontro e receberam diretamente das mãos dos participantes o seu documento final.
Entre as diversas propostas do Encontro BR-163 Sustentável, estão a promoção da recuperação das matas ciliares, em especial aquelas localizadas fora dos limites do Parque Indígena do Xingu, nas cabeceiras dos rios formadores da Bacia do rio Xingu; a criação de Unidades de Conservação (UCs) como compensação de passivos ambientais de assentamentos que não possuem Reservas Legais (RLs); a implementação das UCs já existentes na região.
No Encontro de Sinop (MT), em 2003, estiveram presentes lideranças indígenas, movimentos sociais e autoridades como o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, e os ministros Ciro Gomes (Integração Nacional) e Marina Silva (Meio Ambiente). Consolidação das propostas nos dois estadosNo mesmo período em que as instituições do Mato Grosso começaram a discussão sobre os impactos da pavimentação da BR-163, foi montada uma agenda comum com as iniciativas de planejamento regional em andamento no Pará. Ela contemplava quatro encontros regionais, que aconteceram no final de 2003, e um grande encontro para desenvolvimento das propostas, ocorrido em Santarém, no final de março de 2004. Neste último evento, várias lideranças apresentaram ao governo federal propostas para a sustentabilidade da BR-163 relacionadas aos temas “infra-estrutura e serviços básicos”, “ordenamento fundiário e combate à violência”, “estratégias produtivas e manejo de recursos naturais”, “fortalecimento social e cultural das populações locais” e “gestão ambiental, monitoramento e áreas protegidas”, sintetizadas na Carta de Santarém.
Um novo encontro em Santarém, realizado em novembro de 2004, detalhou as propostas já formuladas em março, conferindo-lhes um formato mais operacional e adaptado á formulação de políticas públicas propriamente ditas, focando tanto medidas emergenciais, quanto às de médio e longo prazo. Também neste último evento, foi criado o Consórcio pelo Desenvolvimento Socioambiental da BR-163, constituído por 32 entidades que atuam na região e coordenado pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri-PA), Formad, FVPP, ISA e Ipam. O Consórcio foi formado com o objetivo de ser o interlocutor do governo federal para viabilizar a implantação de ações prioritárias levantadas pela sociedade em relação ao asfaltamento da estrada.
Em novembro de 2004, em Santarém, as propostas levantadas no Pará e no Mato Grosso pela mobilização em torno da BR-163 foram consolidadas.Iniciativas do governo federalEm virtude da pressão exercida pela mobilização, o governo federal, em fevereiro de 2004, começou a preparar o esboço para um plano de desenvolvimento sustentável para a área de influência da BR-163. Em março do mesmo ano, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) responsável pela elaboração do documento sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República.
A partir de julho de 2004, foi iniciada a primeira série de consultas públicas e debates com todos os segmentos envolvidos (governos estaduais, prefeituras, sindicatos patronais e de trabalhadores, organizações da sociedade civil em geral) sobre o assunto. Em fevereiro de 2005, foi finalizada uma primeira versão preliminar do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável para a Área de Influência da BR-163 já com diretrizes estratégicas e ações prioritárias.
Em março de 2005, ocorreu o Encontro dos Movimentos Sociais de Mato Grosso – Eixo da BR 163, realizado em Lucas do Rio Verde. O evento deu continuidade à discussão sobre a pauta de demandas da sociedade organizada do Mato Grosso em relação à pavimentação da BR-163. Sendo realizado logo após a divulgação da nova versão do Plano BR-163 Sustentável do GTI, o encontro buscou consolidar a pauta de reivindicações e sugestões da sociedade organizada com vistas a subsidiar a 2ª rodada de consultas públicas sobre o tema, que aconteceu em abril de 2005.
Nesse meio tempo, o Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT) encaminhou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) da obra. As consultas públicas sobre o estudo ocorreram em 2004. A previsão do governo é que, após a concessão da Licença Prévia pelo Ibama, os trabalhos na rodovia sejam iniciados no segundo trimestre de 2006.
O Plano BR-163 Sustentável O Plano BR-163 Sustentável divide a área de influência da rodovia em três mesoregiões: Norte (calha do Amazonas e rodovia Transamazônica); Central (Médio Xingu e Tapajós); Sul (Norte do Mato Grosso). Em cada uma dessas áreas foi feito um diagnóstico, apontando o contexto histórico de ocupação, situação fundiária, indicadores demográficos e sociais, lista de obras de infra-estrutura. A estratégia do plano contemplou quatro grandes eixos temáticos: ordenamento territorial e gestão ambiental; fomento às atividades produtivas; infra-estrutura para o desenvolvimento; inclusão social e cidadania. O plano prevê ainda ações para o fortalecimento institucional das organizações da sociedade civil da região, mecanismos de participação e controle social, além de um sistema de monitoramento, avaliação e informações.
O grande avanço contido na proposta é a tentativa de tratar de forma integrada diferentes demandas de setores sociais distintos para diferentes órgãos de governo, trazendo para a discussão da pavimentação da estrada outros componentes do desenvolvimento regional – investimentos para promoção da agricultura familiar, conservação e desenvolvimento sustentável, entre outros. Desta forma, a proposta do governo não se atém apenas a um projeto de obra infra-estrutura, mas a uma estratégia de gestão ambiental e territorial para toda a região. Trata-se de uma experiência paradigmática.
Apesar do documento incluir uma estrutura de gestão social interessante e inovadora, os instrumentos para participação e controle social precisam ainda ser mais bem conhecidos e detalhados para que possam ser implantados efetivamente. Da mesma forma, ainda não há definição de mecanismos de arbitragem para os vários conflitos de interesses que existem na região de influência da rodovia.
Contradições do discurso oficialExistem três possibilidades para o financiamento das obras da BR-163. A primeira, a mais aceita até o momento, seria por concessão à iniciativa privada. Outra opção seria a Parceria Público-Privada (PPP), pela qual os investimentos são divididos entre particulares e o Poder Público. A terceira alternativa seria a utilização de recursos exclusivamente públicos.
A indefinição quanto às possíveis origens de recursos do empreendimento deve-se ao tamanho de seus custos financeiros, sociais e ambientais. A obra está orçada em um valor estimado de pouco menos de R$ 1 bilhão – quase R$ 1 milhão por quilômetro. Além disso, também está prevista uma série de custos adicionais relativos a outros pequenos empreendimentos de infra-estrutura, ações de ordenamento territorial e gestão ambiental, entre outros, conforme definido pelo plano BR-163 Sustentável. Em agosto de 2005, o consórcio de várias empresas privadas que pretendia participar da licitação para o asfaltamento da BR-163 anunciou a desistência da empreitada em razão da queda dos preços da soja e do alto endividamento dos sojicultores na região Centro-oeste.
Embora o governo federal tenha anunciado a obra como prioritária, não foram alocados recursos orçamentários suficientes para a sua execução. Mais do que isso: a destinação de verbas para outras obras ameaça o esforço de discussão e mobilização feito pela sociedade civil e coloca em xeque a capacidade do governo federal de coordenar diferentes políticas de desenvolvimento para a Amazônia.
Para se ter uma idéia do problema, enquanto o Ministério dos Transportes anunciou, em julho de 2005, a liberação definitiva de R$ 100 milhões para reasfaltamento da rodovia BR-310 (Manaus-Porto Velho) e o início dos trabalhos na estrada, o governo destinou, para o ano 2005, apenas R$ 40 milhões para obras de recuperação na BR-163 – sendo que R$ 20 milhões, na verdade, foram investidos na área do cruzamento entre a BR-163 e a rodovia Transamazônica (BR-320). Apesar disso, o Ministério do Meio Ambiente continua afirmando que a prioridade número um do governo na região continua sendo a pavimentação da Cuiabá-Santarém e que as obras na BR-319 precisam de um EIA-Rima. A ausência do estudo foi justamente o argumento usado em uma decisão da Justiça Federal do Amazonas, concedida no final de julho de 2005, para suspender os reparos na Manaus-Porto Velho (saiba mais).
Desde o início das consultas e debates sobre a pavimentação da estrada, houve um avanço efetivo no sentido de atender e incorporar vários pontos da pauta das organizações da sociedade civil que participavam do debate sobre o assunto. No entanto, existem ainda muitas lacunas no plano proposto pelo governo, especialmente no tocante à viabilização da agricultura familiar. Além disso, é bom lembrar que na segunda rodada de consultas, quando ocorreram as discussões mais intensas e importantes, as comunidades indígenas que habitam a região não estiveram representadas.
Mesmo reconhecendo os benefícios que o asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém trará, a realização dessa obra não pode prescindir de uma ação governamental coordenada que vá no sentido de assegurar que o ordenamento regional contemple também os interesses dos movimentos sociais, das populações indígenas, e a conservação dos recursos naturais, sobretudo, da qualidade da água.
Foi necessário organizar um longo processo de discussão com os vários representantes da sociedade civil para que os anseios e as reivindicações da população local fossem incorporados na construção de um modelo de gestão territorial previsto nas agendas e políticas públicas. O processo de articulação surgiu no seio dos movimentos sociais e resultou nos vários eventos mencionados acima, com grande participação da sociedade civil organizada.
O ISA acredita que, para a realização da obra, é imprescindível garantir não só a participação da sociedade civil nos espaços de interlocução, como também incorporar de fato suas reivindicações no Plano BR-163 Sustentável. É urgente que o Poder Público comprometa-se verdadeiramente com um processo democrático na realização de obras de infra-estrutura de grande porte na Amazônia, respeitando a biodiversidade, melhorando as condições de vida das populações locais e assegurando a adequada repartição dos benefícios advindos dessas obras para todos os segmentos sociais atingidos por elas.
Muito pouco tem sido feito para que o Plano BR-163 Sustentável saia efetivamente do papel. A versão final do documento não foi apresentada e nem mesmo definitivamente aprovada. Além disso, parte das ações previstas no plano precisaria ser iniciada com certa antecedência, pois têm caráter estruturante e deveria antecipar-se às conseqüências da obra. O parecer técnico do Ibama sobre o EIA-Rima recomenda expressamente que o Plano BR-163 Sustentável do governo seja implantado antes do início dos trabalhos na estrada.
O ISA pretende continuar atuando na coordenação do Consórcio BR-163 Sustentável, (leia mais sobre a participação da sociedade civil) estimulando o debate com todos os segmentos sociais envolvidos, colhendo e divulgando informações sobre o tema com toda a sociedade civil. A participação democrática e o controle social são pressupostos obrigatórios para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável não só no Pará e no Mato Grosso, mas em todo o País.