O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, já divulgou três notas à imprensa sobre a acusação de ele ter recebido, entre março e novembro de 2003, uma propina mensal de 10 000 reais. A propina foi paga pelo empresário Sebastião Augusto Buani, concessionário do restaurante Fiorella, que, até a semana passada, funcionava no décimo andar de um edifício que faz parte do complexo da Câmara, conhecido como Anexo IV. Na sua última nota, divulgada na tarde desta segunda-feira, Severino nega novamente que tenha embolsado um mensalinho de 10 000 reais e, pela primeira vez, rejeita a suspeita mais demolidora sobre sua atuação como primeiro secretário da Câmara – a suspeita de que tenha assinado um documento em abril de 2002 prorrogando a concessão de Buani até 2005, de forma clandestina e irregular. “Como poderia eu ou qualquer outra pessoa assegurar-lhe cinco anos de concessão, sem licitação?”, escreveu Severino. Nesta reportagem, VEJA reproduz, com exclusividade, o documento que Severino garantiu nunca ter assinado – e agora pode lhe custar o mandato.
O documento tem apenas cinco linhas, é datado do dia 4 de abril de 2002 e informa, numa hermética linguagem burocrática, que a concessão seria prorrogada “até 24 de janeiro de 2005”. VEJA submeteu o documento à análise do especialista Celso del Picchia, perito em documentoscopia, em São Paulo. Del Picchia analisou se o documento era verdadeiro, sem montagens, e também se a assinatura de Severino Cavalcanti era autêntica. Em seu laudo de dezesseis páginas, Del Picchia afirma: “Nada pode ser levantado que desabone a autenticidade do documento analisado por este perito”. Com isso, a situação se complica enormemente para o presidente da Câmara – e por três razões. Primeiro, porque ele jamais poderia ter assinado a prorrogação de uma concessão por conta própria. Ao fazê-lo, Severino violou um código legal – o Regulamento dos Procedimentos Licitatórios, que disciplina como deve ser feita a concessão de áreas públicas a empresas privadas dentro da Câmara dos Deputados.
“Severino não poderia prorrogar nenhum contrato sozinho. Ao assinar um documento sem valor legal ele fez isso apenas para enganar o empresário. É chocante, é quebra de decoro parlamentar”, disse o deputado Ricardo Izar, presidente do conselho de ética da Câmara, ao ser informado por VEJA da existência do documento. O segundo complicador é que o documento é uma prova cabal de que Severino mentiu ao dizer que jamais assinou tal papel em sua nota oficial distribuída à imprensa – e a mentira também configura uma quebra de decoro parlamentar. Em terceiro lugar, o documento é um eloqüente sinal de que a relação entre Severino e Sebastião Buani incluía ações obscuras e clandestinas, o que dá ainda mais credibilidade ao relato escrito por Buani, divulgado por VEJA em sua última edição impressa. No relato, sob o título “A História de um Mensalinho”, Buani conta que pagava propina de 10 000 reais para Severino e que, em troca do documento que VEJA agora divulga, pagou 40 000 reais – 20 000 reais para Severino e a outra metade para o deputado Gonzaga Patriota, do PSB de Pernambuco, terra de Severino.
Severino nega tudo. Em entrevista a VEJA, Gonzaga Patriota também negou tudo e disse que mal conhecia Buani – mas, na medida em que o tempo passa e os documentos aparecem, sua memória vai ganhando mais nitidez. Patriota já lembrou até que participou, sim, da elaboração do documento que prorrogou a concessão de Buani. “Como sou advogado, dei orientação dizendo que ele (Buani) tinha direito à renovação. Não sei se eu mesmo fiz ou mandei para ele a fundamentação. Mas não foi nada de Justiça, não. Foi apenas um requerimento administrativo. Fundamentei que ele tinha direito à renovação do contrato de acordo a lei tal, tal e tal… Foi só isso”, explica Patriota. Teriam os 20 000 reais caído no bolso de Patriota a título de honorários advocatícios? “Zero. Ele nunca me deu um centavo. Ajudei apenas por ajudar.” Então, não recebeu nenhuma remuneração? Nadinha? “Na verdade, e só comecei a lembrar disso agora… Eu fiz um favor porque ele empregou algumas pessoas que eu pedi. Foi um favor pagando outro favor.”
Tanto pelo que prova quanto pelo que sugere, o documento de abril de 2002 é um petardo contra Severino. Além de violar uma norma interna da Câmara dos Deputados, ao assiná-lo Severino feriu o artigo 92 de Lei de Licitações, a 8666, na qual tipifica-se como crime beneficiar, sem autorização legal, um detentor de contrato com o poder público. A pena é de dois a quatro anos de cadeia. Se ficar provado que Severino e Patriota arrancaram 40 000 reais do empresário em troca do documento, aí tem-se crime de concussão. Concussão é o nome que se dá à extorsão praticada por um agente público. Dá cadeia de dois a oito anos. O documento assinado por Severino Cavalcanti é uma ilegalidade tão gritante que nem aparece no processo formal da concessão de Buani – em vez disso, ficou escondido nas sombras. “Isso não consta de nenhum dos processos administrativos que trataram da concessão do senhor Buani. Nunca tivemos conhecimento disso”, diz Sérgio Sampaio, diretor-geral da Câmara.
Em “A História de um Mensalinho”, Buani conta que, no dia 4 de abril, já com o documento de Severino na mão, certo de que fizera um grande negócio, resolveu procurar um assessor do hoje presidente da Câmara. Na conversa, percebeu que caíra numa tremenda cilada. O assessor lhe informou que o documento não tinha nenhum valor legal. (VEJA apurou que quem lhe deu a notícia foi o assessor parlamentar José Carlos Albuquerque, que continua no gabinete de Severino até hoje.) A razão da nulidade do papel é simples: no final de 2002, o contrato original de Buani, iniciado em 29 de janeiro de 1998, completava 60 meses – e, pelas regras, nenhuma concessão pode ser renovada por mais do que 60 meses. Logo, se Buani quisesse continuar explorando o restaurante na Câmara a partir de 2003, teria que disputar uma nova licitação. Severino sabia disso. Tanto sabia que, no processo legal do caso, guardado nos arquivos da Câmara, consta que Severino rejeitou o pedido de Buani para prorrogar o contrato até 2005 e mandou fazer uma licitação – conforme prevêem as normas legais. Ou seja: na lambança de Severino, o documento oficial diz uma coisa e o documento clandestino diz o contrário.
Diante disso, a favor de Severino, alguém poderia até alegar que, então, ele violou as normas num documento clandestino mas o tal papelucho clandestino não gerou efeito algum. Ocorre que nem isso é verdade. De público, Severino mandou fazer a licitação, que deveria ocorrer até janeiro de 2003, só que a licitação não foi feita. Por quê? Pelas explicações oficiais, porque a cozinha de um dos restaurantes da Câmara seria submetida a uma reforma e, antes que a reforma fosse concluída, não era possível abrir uma concorrência pública. Diante disso, no início de janeiro de 2003, Severino, num de seus derradeiros atos como primeiro-secretário, prorrogou o contrato de Buani em “caráter excepcional” por mais um ano, até fevereiro de 2004. Lembre-se: durante todo o ano de 2003, enquanto desfrutava do seu “caráter excepcional”, Buani diz que pagou uma propina mensal de 10 000 reais a Severino. Afirma, em seu relato escrito, que os desembolsos começaram em março e, por falta de recursos, foram interrompidos em novembro de 2003. E o que mais aconteceu em novembro de 2003? Finalmente, começou a reforma da cozinha! Sim, a reforma da cozinha que impediu a licitação em janeiro de 2003 só começou a ser feita em dezembro daquele ano – ano durante o qual a propina de 10 000 reais correu solta.
Com a divulgação do relato de Buani sobre a propina paga a Severino, publicado na última edição de VEJA, duas fontes que deram informações à revista sob a condição de ter suas identidades preservadas decidiram aparecer. A testemunha-chave é o estudante de direito Ezeilton de Souza Carvalho, 33 anos, casado e pai de dois filhos. Carvalho trabalhou com Buani durante três anos. Até quinta-feira passada, ele era gerente-executivo e braço direito do empresário no restaurante Fiorella. “O relato minucioso das propinas foi escrito a mão pelo Buani e digitado num dos três computadores do escritório da empresa, que fica no 9º andar do Anexo IV da Câmara, no final de julho. Eu ditei o texto e a Jucilene (refere-se a Jucilene Maria Matias, secretária de Buani) redigiu no computador”, diz Carvalho. “Em seguida, Buani rasgou o manuscrito, imprimiu o texto que digitamos e foi ameaçar o Severino.” Ontem à noite, em depoimento sigiloso a quatro parlamentares da oposição que acompanham o caso, Carvalho confirmou o que disse a VEJA. Ele está agora, nesta tarde, preparando-se para prestar depoimento à Polícia Federal para relatar o que sabe sobre as propinas pagas por Buani a Severino.
Outra testemunha é o empresário Marcelo Percia, 42 anos, sócio de Buani em um restaurante no shopping Pátio Brasil, de Brasília, entre fevereiro e agosto de 2003. Percia sabe dos bastidores de um dos casos mais explosivos relatados por Buani em seu diário do mensalinho – o de que chegou a pagar uma fatura do cartão de crédito de Severino. Percia conta que, no período em que foi sócio de Buani, o empresário lhe pediu que pagasse uma fatura do cartão de crédito de Severino no valor de cerca de 8 000 reais. “Não lembro exatamente se o mês era março ou abril de 2003. Mas lembro do valor, porque era alto. E lembro do titular, porque Buani me disse que era um deputado a quem ele devia um favor. Mas ninguém me disse que o cartão era do deputado Severino Cavalcanti. Sei disso porque eu tive a fatura nas minhas mãos. O cartão era do Banco do Brasil. Só não paguei porque tive um desentendimento financeiro com o Buani. Ele pegou a fatura e foi embora p…da vida.”, diz Percia. Segundo o relato de Buani obtido por VEJA, o cartão de Severino foi pago por meio de um cheque seu numa agência bancária de Brasília. “Foi descontado pelo motorista do deputado na agência Bradesco 0241 com a gerente do banco cujo nome é Jane.” A gerente do Bradesco é Jane de Albuquerque, que hoje trabalha no Sudameris.