Tornou-se lugar comum a exposição de presos provisórios (prisão preventiva, temporária ou em flagrante-delito) conduzidos sob algemas, independentemente de idade, sexo, condições físicas, etc.. Porém, a utilização de algemas (do árabe, al-djamia: a pulseira) não pode ser feita indiscriminadamente e sem critérios.
Com efeito, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), em seu artigo 199, estabelece que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal.” Este decreto federal, no entanto, nunca foi editado. Então, na falta de norma federal específica, devemos observar o que consta hoje em nosso ordenamento jurídico a respeito da matéria.
Dispõe o artigo 284 do Código de Processo Penal que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Este dispositivo vem complementado pelo artigo 292, que tem a seguinte redação: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”.
Ainda em nosso ordenamento jurídico, podemos utilizar o disposto no artigo 234, parágrafo 1º do Código de Processo Penal Militar: “O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. § 1º. – O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242.” (grifo nosso).
Há, ainda, a Lei 9.537/97, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional, estabelecendo o seguinte: “O comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada” pode, entre outras medidas de segurança, “ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga” (art. 10, III).
Vê-se, assim, que a utilização de algemas deve se restringir a casos excepcionais, quando haja, efetivamente, perigo de fuga ou resistência por parte do preso. Fora daí, o uso desnecessário deste instrumento fere a dignidade da pessoa humana, representando uma ilegítima (e desautorizada) restrição a direito fundamental.
Atente-se que a já referida Lei de Execução Penal impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios (art. 40).
Logo, conclui-se, sem muita dificuldade, que o uso abusivo e sem critério de algemas é conduta ilegal e, como veremos adiante, criminosa. Na verdade, mesmo que nada dispusesse a legislação ordinária, o certo é que o texto constitucional vedaria a utilização deste meio de força, sem que houvesse necessidade e indispensabilidade da medida.
A Constituição Federal é clara ao estabelecer como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e como princípio a prevalência dos direitos humanos (artigos 1º, III e 4º, II). Mais adiante, no artigo 5º, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, assegura “aos presos o respeito à integridade física e moral” e “que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (incisos III e XLIX).
Ora, “quando o direito interno inclui a dignidade entre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, estabelece a dignidade da pessoa como ´fonte ética` para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais.” (Célia Rosenthal Zisman, Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 23).
O princípio da dignidade obriga “que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”. (Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 129).
Para José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995, p. 106).
Já no plano internacional, podemos citar as “Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos”, documento adotado pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Genebra em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas por meio das suas resoluções 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957 e 2076 (LXII), de 13 de maio de 1977, Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e Social.
No item 33, recomenda-se, entre outras coisas, que “a sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção. Mais ainda, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação só podem ser utilizados nas seguintes circunstâncias: a) Como medida de precaução contra uma evasão durante uma transferência, desde que sejam retirados logo que o recluso compareça perante uma autoridade judicial ou administrativa; b) Por razões médicas sob indicação do médico; c) Por ordem do diretor, depois de se terem esgotado todos os outros meios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causar prejuízo a si próprio ou a outros ou de causar estragos materiais; nestes casos o diretor deve consultar o médico com urgência e apresentar relatório à autoridade administrativa superior.” (grifo nosso).
Devem ainda ser indicados dois pactos internacionais, ambos promulgados pelo Brasil, que também proclamam o respeito à integridade física e moral dos presos, o que impede a utilização indiscriminada de algemas: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto 592, de 6 de julho de 1992 – art. 10) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992 – art. 5º).
Sobre a validade, no plano interno, destes documentos internacionais, veja-se o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A propósito, Fábio Konder Comparato ensina que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (…) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de Direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico” (Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91). É o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.
Segundo Perez Luño, “este processo de afirmação internacional dos direitos humanos (…) abre — apesar de tudo — uma esperança em uma humanidade definitivamente livre do temor em ver constantemente violados seus direitos mais essenciais.” (Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editorial Tecnos, 1984, p. 42 — tradução livre).
Aliás, no Brasil, esta preocupação é antiga, pois o Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, já determinava no seu artigo 28 que “o preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor”.
Pergunta-se, então: caso haja abuso na utilização deste instrumento de força, sua utilização desnecessária e abusiva, qual a conseqüência para o sujeito que ordenou a medida odiosa? Sem dúvidas, incorre o funcionário público no crime previsto na Lei 4.898/65 (artigos 3º, “i” e 4º, “a”, “b” e “h”), delitos de ação penal pública incondicionada, com pena máxima de seis meses de detenção, além de multa, perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos (art. 6º, §§ 3º, 4º. e 5º).
Como afirma Hely Lopes Meirelles, “sob a invocação do poder de Polícia, não pode a autoridade anular as liberdades públicas ou aniquilar os direitos fundamentais do indivíduo, assegurados na Constituição” (apud Gilberto e Vladimir Passos de Freitas, in Abuso de Autoridade, São Paulo: Revista dos tribunais, 3ª ed., p. 69).
O artigo 4º, “h” da Lei 4.898/65, estabelece ser crime de abuso de autoridade “o ato lesivo da honra, ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal”. Comete este delito a autoridade que age com o propósito de lesar a honra ou o patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica.
Esta lei tem dois objetivos primordiais: que a função pública seja exercida na mais absoluta normalidade democrática, no sentido que os representantes da administração pública tenham um comportamento legal, portanto, sem abusos de qualquer ordem; de outro modo, a lei também visa a proteger as garantias individuais inerentes à pessoa, aquelas mesmas postas na Constituição Federal.
Na lição de Canotilho, no Estado Democrático de Direito deve-se atentar para o Princípio da Proibição do Excesso, impondo-se a observância de três requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade. Segundo o jurista português, “a exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adoção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de proteção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos ´coativo`, relativamente aos direitos restringidos.” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, p. 455).
Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais”.
Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(…) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 01 e 05).
Celso Lins é advogado criminal e professor de Direito Processual Penal da Unicen (Sinop).