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O nosso George Floyd de cada dia

Wagner Antonio Camilo é Promotor de Justiça em Mato Grosso.
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Há pouco mais de sete meses, em caso que ganhou repercussão mundial, ocorreu o julgamento do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, mais um cidadão negro asfixiado pelo racismo e pela intolerância ainda arraigados estruturalmente em determinadas sociedades, como a norte-americana. E como a nossa.

Entretanto, é preciso reconhecer que, ao menos, os norte-americanos têm a coragem de colocar o dedo na ferida do racismo, e de lutarem para extirpá-lo, conseguindo evidentes avanços para alcançar uma integração não somente do negro, como de todas as demais minorias em sua sociedade megadiversa e heterogênea, com idas e vindas, sucessos e pequenos retrocessos, no jogo de ações e reações característicos da evolução humana.

E neste ponto, o julgamento de George Floyd e a condenação de seu assassino simbolizam um marco histórico importante. Tal como no Brasil, os Estados Unidos são um País onde todos são formalmente iguais perante a lei; tal como no Brasil, estão oficialmente livres de políticas segregacionistas que impeçam pessoas negras de frequentarem um simples restaurante ou um cinema; e tal como no Brasil, todos são presumivelmente inocentes até prova em contrário.

Todavia, filmado à luz do dia e mostrado para bilhões de pessoas em todo o mundo, o assassinato ilustrou como a discriminação não é um fato imaginário; mas que, ao contrário, a realidade nossa de cada dia é bem distante da formal previsão de igualdade na lei, e que tais episódios dantescos de racismo e de intolerância, nem sempre filmados e muitas vezes sob o manto protetor da noite e da escuridão, ainda constantemente acontecem, seja nas “quebradas” das comunidades mais pobres, seja nos bairros e comércios de luxo, onde a circulação de um negro, ainda que honesto e inocente, é sempre uma atitude suspeita em potencial.

Lá, o racista assassino de George Floyd não ficou impune, foi levado às barras dos tribunais, processado e condenado, e de lá saiu algemado e preso para o cumprimento de sua pena, como exemplo pedagógico necessário de que o racismo não deve ser tolerado. Aqui entre nós, uma família negra em um regular passeio de domingo, sumariamente confundida com um carro de bandidos, e sem nenhuma chance para esclarecimentos, foi alvejada com mais de oitenta tiros nas ruas do Rio de Janeiro e perdeu seu pai trabalhador e chefe de família, enquanto os assassinos saíram livres pela porta da frente do tribunal enquanto aguardam seus infindáveis recursos, a par de condenados, no país que é mestre em semear leis que perpetuam a injustiça.

O Brasil é o campo fértil de onde brota a cultura da impunidade, da qual o mais recente exemplo foi a vergonhosa alteração da Lei de Improbidade Administrativa, transformada agora em lei da impunidade administrativa. Aqui no Brasil, ao contrário de lá nos Estados Unidos, o racismo segue sendo impune e tolerado, com casos de reiteradas discriminações acontecendo diariamente pelos quatro cantos do país, sem nenhuma atenção e nem política pública eficiente de nosso governo voltada para alterar esta triste realidade.

Lá, onde os negros representam 13% da população, a diversidade e o reconhecimento à importância e à dignidade das demais etnias é uma política prioritária, em um Governo onde os negros têm vez e voz e têm presença importante, como são exemplos a própria vice-presidente, Kamala Harris, o secretário de Estado Lloyd Austin, a embaixadora na ONU, Linda Thomas-Greenfield, a secretária de Moradia e Desenvolvimento, Marcia Fudge. Em uma sociedade construída sobre os alicerces da escravidão e da discriminação (como a nossa), esta representatividade é fundamental e simbólica da necessidade da reforma destes fundamentos, trocando-os pelo respeito ao diferente, pela igualdade de tratamento ao outro, pelo encorajamento e pela esperança que desperta nos negros de que podem alcançar um padrão de vida digna e qualitativa, como todos merecem. Representa a audácia da esperança em dias melhores, como já ressaltou Barack Obama.

Representatividade e simbologia são instrumentos importantes na reconstrução cultural do racismo arraigado em nosso subconsciente. Assim como o julgamento de George Floyd foi marcante, também o foi, em novembro de 2020, ver a bandeira confederada do Mississipi, símbolo do racismo e do orgulho supremacista, finalmente sendo abandonada pelo governo local, após aprovação em plebiscito, e sinal de uma comunidade que se permite evoluir. Quem não se lembra de “Mississipi em Chamas”, filme vencedor do Oscar e com magistral interpretação de Gene Hackman? Em um Estado norte-americano que por séculos tratou o racismo e a segregação como política oficial de governo, e onde aconteceram cruéis episódios racistas de violência, isso é de um simbolismo poderoso e transformador.

Cá em nossas bandas tropicais, porém, a luta ainda será muito mais renhida, face à paralisação causada pelo retrocesso de uma política oficial (ou a ausência de) que nem mesmo reconhece a importância de uma etnia que representa 54% da nossa população, que nem mesmo reconhece a existência do racismo estrutural de nossa sociedade, que não reconhece os “George Floyd” que diariamente acontecem pelos quatro cantos do Brasil, na maioria das vezes sem nenhuma filmagem e sem consternação pública. Não há a marca de uma política oficial atenta a um problema que aflige a maioria da população brasileira, senão a marca nas costas e no sentimento de cada negro discriminado, nem sempre por violência física, mas, invariavelmente, pela intolerância que sequela na alma.

É nítido perceber, quase que todos os dias, o brilho nos olhos de meninas negras que imitam e postam fotos da jornalista Maju Coutinho, apresentadora na bancada de um dos mais importantes telejornais do País, e que esta, orgulhosamente de seu papel, reproduz em suas redes sociais. Tais meninas não somente se enxergam em Maju, como nela se inspiram em um ganho de autoestima, nela enxergam a esperança de que podem alcançar o seu sucesso, que podem trilhar o seu caminho, que também podem vencer a barreira invisível que as marca e as subvaloriza. Ou, quando importantes lideranças empresariais reconhecem o racismo estrutural em seus postos mais elevados de direção e de gerência, adotando políticas afirmativas que estimulem a transformação dessa realidade, e tornem seus ambientes de trabalho mais acessíveis e que espelhem e permitam a nossa pluralidade étnica no crescimento dentro da empresa, como elogiavelmente vêm fazendo instituições como Magazine Luiza, Bayer, Ambev e Gerdau.

Mas, para nossa triste constatação, caro leitor, você vê algum negro no Ministério do Governo do Brasil, “o País mais africano fora do continente negro”? Estas meritórias iniciativas esparsas como as supramencionadas, aqui e ali, continuarão sendo insuficientes enquanto não houver o engajamento necessário de uma política oficial que, como primeiro passo, reconheça a existência do nosso racismo estrutural.

Muitas vezes pode parecer chato ou incômodo para alguns tocar em referida temática, mas aproximando-nos da data comemorativa do Dia da Consciência Negra, é imperativo e prioritário ter a coragem e a audácia dos norte-americanos e colocar o dedo na ferida desta chaga social ainda presente em nossos dias, para lembrar que temos os nossos “George Floyds” tupiniquins acontecendo todos os dias pelo Brasil, bem como que a abolição material e verdadeira da discriminação, nem de longe, ainda não raiou.

 

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