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Mulato se foi, deixando memórias de luta, alegria e sabedoria

Simone Alves
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Como alcançar a longevidade? Seo Antônio Mulato, falecido ao final da tarde deste dia 15 de setembro tranquilamente confidenciava a todos os elementos do seu feito: alegria, vinho, dança e a força de seus ancestrais. Mesmo debilitado já devido os 113 anos comemorados em 12 de junho, não deixava de sorrir. “Alegria! Alegria!”, gostava de repetir. E ignorando a dificuldade na fala, sem titubear saía da sua boca, de forma suave e ao mesmo tempo cheia de energia, esta recomendação – Alegria! O registro deste momento foi feito durante sua participação no evento realizado em julho e chamado de Lavagem das Escadarias da Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, no qual ele foi nomeado como patrono. E a Comissão Organizadora da ‘Lavagem’ fez questão de prestar as últimas homenagens a ele.

Com problemas de saúde, Mulato faleceu no hospital. O velório neste domingo ocorreu na Câmara de Vereadores do município de Nossa Senhora do Livramento. No caixão, seu semblante refletia brandura. O clima era de tristeza, claro, porém o sentimento dominante era de acalanto e empatia por saber que era chegada a hora de descansar. Não era fácil gostar de dançar, tomar vinho e contar histórias aos 113 anos e já não poder realizar, ao menos não com a mesma destreza vista até os seus 110 anos. Era um incômodo que ele não costumava reclamar.

Os impressionantes anos vividos não o impediu de ser o mediador da gigante família e das diversas comunidades do quilombo de Mata Cavalo, localizado em Nossa Senhora do Livramento. Com a ajudas das netas, entre elas, Zélia da Conceição, o filho mais velho de Mulato, Irineu Manoel da Conceição, de 86 anos, contabiliza 13 filhos vivos, 4 já falecidos, 34 netos, 41 bisnetos e 17 tataranetos. Os números são incertos para muitos. O próprio Antonio Mulato brincava sobre haver mais filhos. Difícil saber, até porque era muito caçoador, como descreveu sua prima-irmã Bernardina Teodora da Conceição que conviveu com ele por 100 anos. “Ele não é gente. É levado. Gosta de caçoar de tudo. Eu dançava com ele nas festas”, disse Bernardina com sua lembrança alegre. Ela deve demorar a assimilar seu falecimento.

Seo Antônio Mulato foi uma destas almas boas que todos gostavam de estar perto. Sempre recebeu muitas vistas e formavam-se filas para ele abençoar. Crianças o adoravam e se jogavam em seu colo, esquecendo a idade dele. Além do carisma, era respeitado por ser um líder familiar e por ser uma das figuras mais representativas da população negra no país.

Símbolo de resistência do povo negro, se importava com a memória cultural de seu povo. Foi uma importante liderança na luta pela regularização do quilombo, o que ainda não ocorreu, mas o quilombo recebeu da Fundação Cultural Palmareso certificado de comunidade remanescente, um respeitável símbolo em favor da identidade étnica do território.

Mulato lutou pela implantação de uma sala de aula no quilombo na década de 40. A primeira sala tinha teto coberto com palhas de babaçu e o piso era de chão batido. Mais doloroso do que enfrentar a estrutura precária, foi enfrentar o preconceito e intolerância. Para seus filhos frequentarem a sala de aula, Mulato teve que recorrer às autoridades locais. Essa sala de aula funcionou por pouco tempo e os moradores do quilombo tiveram que se reunir para construir outro espaço e as aulas já eram ministradas pela professora Tereza Conceição Arruda, filha de Mulato, já falecida e que dá nome à escola. Hoje, o quilombo de Mata Cavalo é o único em Mato Grosso que conta com uma escola com 400 alunos e construída com recursos do Governo Federal, o que ocorreu em 2012.

Símbolo de resistência, de alegria, de encanto e sabedoria. A imagem que fica para quem contemplou o seu jeitinho é a de um ancião com sapatos pretos bem polidos, terno com uma rosa às vezes, chapéu e o punhal de prata na cintura que não tirava por nada. Sempre gracioso. Também fica a imagem do pandeiro e do ganzá que ele tocava, das morenas que ele chamava para dançar mesmo sem muitas forças nas pernas e do quanto ele adorava uma festa. Divertia-se com o Cururu e o Siriri. Aos seus familiares, fica a expectativa de se fazer sair do papel o projeto de um memorial para que a cultura, com suas lembranças históricas de luta, força e doçura, seja mantida como referência para sempre.

Simone Alves – jornalista

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