Mestre Dr. Umbig tinha a sua origem pesquisada nos arcanos da teoria das possibilidades. Alguns lhe atribuíam a nacionalidade francesa, outros, a nacionalidade inglesa. Chegaram até a conferir-lhe a Alemanha como pátria, deixando de atentar para os seus caracteres físicos. Ora (sem a menor intenção de adentrar em terreno próprio da Antropologia), o leitor há de convir que entre essas raças há diferenças perceptíveis no tipo físico. Se os curiosos em desvendar o segredo buscassem os elementos nos caracteres do seu nome poderiam trilhar uma pista mais segura para chegarem à verdade. Mas quando a emoção domina o debate, o diagnóstico desanda. Elementar! Esse assunto só fazia gerar a controvérsia e o desentendimento, ainda mais quando era turbinado por indisposições e pendências anteriores. Irados por natureza e não por imposição do ofício, poder-se-ia dizer. É bom ter presente que a ira é uma espécie que comporta natureza diversificada. O leitor precisa ficar bem atento para não ser ludibriado, pois em certas situações é utilizada como método derivado da arte circense, irrigando os meios para atingir os fins, instrumento utilizado com freqüência para abrir as porteiras da ingenuidade. Há muita gente levando vida boa, colhendo os benefícios desse método.
Se a questão em si já encerrava dificuldades na sua solução, o que dizer então quando acrescida de outros temperos. Ora atribuíam-lhe o ofício de psicólogo, depois de psicanalista, e mais adiante o de sociólogo. Os filósofos puxavam a brasa para sua sardinha, sem nenhum pudor: É filósofo, sem sombra de dúvidas. Introspecção e reflexão dão na mesma coisa! Diziam. Alguns até chegaram a rotulá-lo como empirista.
Os mais pragmáticos imaginaram-no ser portador de um novo método científico, capaz de redimir a humanidade (equivalente a uma nova alquimia), porém agora eficiente o bastante para conferir riqueza abundante a todos. O que já havia sido tentado sem sucesso durante a Idade Média poderia ser a solução do maior dos problemas com que o homem se tem deparado ao longo dos tempos: o bolso. E ainda mais se fossem juntadas a ciência e a alquimia num mesmo laboratório!
Essa dupla, impulsionada pela sinergia, reviraria o mundo. Tranquilamente! Outros cogitaram tratar-se de um novo Napoleão Bonaparte, agora concentrando as suas energias num novo formato de trabalho, trocando as baionetas por uma ciência salvadora, capaz de reduzir as horas de trabalho de todos, com grandes resultados a serem comprovados pela geometria do bolso, livres das influências maléficas que os impostos exercem, de modo a fundar uma sociedade baseada no ócio e no prazer, desprezando a teoria de Freud: a de que estamos condenados ao sofrimento pelos erros dos nossos ancestrais, demonstrando, inequivocamente, a sua absoluta e reafirmada inutilidade na área do conhecimento científico…
Os sonhos e as esperanças são argilas que os homens trabalham segundo o seu próprio entendimento, dando-lhes o formato que lhes convêm (Jorge Luís Borges escreveu alguma coisa semelhante referindo-se ao tempo: ‘O passado é como argila que o presente trabalha a seu capricho’). Sem eles, porém, os conflitos e os desentendimentos não teriam amortecedores. O Mestre Guimarães (agora estamos tratando de outro mestre, que não o desta narrativa), já havia afirmado que as religiões estão aí para desendoidecer a gente.
Divagar é preciso. Seguir em frente, também é preciso.
O nosso Mestre, Dr. Umbig, foi ganhando fama e despertando interesses, tanto que integrantes de partidos políticos o procuraram para que se inscrevesse em sua legenda, em vista de terem detectado que, no ritmo que a coisa estava andando, poderia, rapidamente, arrebanhar uma legião de seguidores e de votos, o que facilitaria a vida dos seus prováveis candidatos, reforçando a legenda e reduzindo o esforço a que estão obrigados costumeiramente a empregar. Essa nova aquisição viria em momento muito oportuno, eis que o eleitores passaram a exigir mais criatividade dos candidatos para deixarem-se seduzir…
A verdade é que Dr. Umbig se mantinha distante desses embates, atribuindo um poder secundário a essas discussões, desprezando as pessoas nelas envolvidas. Chegou a dizer a si mesmo: “ou é desvio de conduta ou é preocupação exagerada com a minha pessoa”. Firmou entendimento de que as suas energias não poderiam ser dispersadas, seja por que motivo fosse. E não seriam alguns desocupados que lhe tirariam da trilha… A ciência estava acima dessas curiosidades tolas, intuía o Mestre. Já os críticos mais experientes estavam preocupados seriamente em conhecer o seu universo e desprezavam questões menores, como as de origem e de nacionalidade. O que lhes interessava era seguir as suas pegadas para descobrir a verdade sobre a “mundividência umbiguiana”, que, em algum momento, poderia ser revelada. Buscavam desvendar-lhe os passos e a sua trajetória pelo mundo.
Até aqui pouco se conhecia do enclausurado e enigmático cidadão, porém despertava as mais variadas conjecturas. Era uma personalidade que se multiplicava pela ótica dos agentes dominados pelo vírus da curiosidade.
Cada um pretendia, como já dito, puxar a brasa para a sua sardinha. Assim, também, ocorria com a turma da Filosofia, que não arredava pé nesses entreveros, tentando emplacar o seu diagnóstico, com a vantagem de dispensar os testes da experiência: Mestre Dr. Umbig representava a encarnação do Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama, ou seja, o modelo de homem que acertou as contas com a História.
Não havia limites nessas incursões…
Já os marxistas, convictos e testados pelo exercício teórico e prático, tinham-no como o profeta enviado por Marx para confirmar a dialética como verdade científica eterna e absoluta, e que tudo mais era mistificação, em que pese as dificuldades que Stálin encontrou para aplicá-la na Biologia no caso Lissenko. E neles brotou a crença de que, a qualquer momento, haveria a declaração de Mestre Umbig atestando que nem mesmo os desvios e as dissensões do presente poderiam reter o rumo dos acontecimentos na direção da confirmação daquela convicção.
Os católicos agostinianos, adeptos da teoria da predestinação das almas, convenceram-se de que se tratava de um enviado seu, com a missão de divulgar a lista dos escolhidos de Deus aqui na Terra. Assim, muitas portas, até então fechadas, poderiam abrir-se aos integrantes dessa lista. Com um referencial desses conquistariam o mundo…
Não é sem razão que os Contos Árabes Mil e Uma Noites registraram em algum lugar dos seus escritos: “O interesse não conhece leis!”
Contudo, ordenar as coisas segundo o entendimento de cada um é tarefa fácil , porém colher os resultados é que são outros quinhentos!. Imaginação e realidade passaram a travar um duelo surdo, uma convivência problemática.. E para agravar ainda mais a complicada situação, o nosso personagem principal continuou mantendo-se distante, alheio, como se pertencesse a um mundo superior, fomentando, com sua omissão, suspeitas, conjecturas e dúvidas, infligindo severo castigo aos irrequietos curiosos.
Num segundo momento, já que não conseguiram extrair-lhe a verdade pelo exercício da diplomacia, chegaram a arquitetar conquistá-la na marra. Um dos mais aflitos e exaltados conjeturou amordaçá-lo e subtrair-lhe o direito de ir e vir até que se dispusesse a revelar as suas descobertas: Não confessa por bem, irá fazê-lo na marra! . Argüía o açodado cidadão. Vamos dar nome ao boi: Açonildo Virulento, o seu nome. Era habituado a abrir caminhos falando alto. Valentia ainda não testada nas urnas, ou melhor, pelos fatos da vida rotineira… Mas como a fama corria, colhia os dividendos compatíveis…
Outro integrante da confraria, em reforço dessa proposta, quis melhorá-la com a marca da objetividade, cogitando a possibilidade de fustigá-lo, no imaginário claustro, com um chicote. São os lídimos representantes dessa numerosa “corrente filosófica” que erige o porrete como sendo o melhor e mais eficiente método para solucionar os problemas, que tinha em Açonildo a expressão mais notável, cuja valentia era portadora de um megafone adquirido num bazar da ingenuidade do público alvo. Chegando ao Mestre essas notícias, nem mesmo as ameaças dos mais “irados” foram capazes de demovê-lo. Manteve-se impassível, acreditando na profecia popular de que “cão que ladra não morde”, não se apoquentando com a possibilidade de perder o direito de locomover-se com total liberdade.
Era inegavelmente um homem obstinado, governado somente por sua determinação. Desses que hoje se constituem em raridade num mundo em que os terceiros estão cada vez mais aptos a nos influenciar e dirigir o nosso destino, tanto quanto foi guiado, em direção à ruína, o antológico e crédulo personagem Rubião, de Machado de Assis.
O pragmatismo e a necessidade de colher bons frutos, longe de um ambiente carregado e inflado de curiosidades e de pressões como aquelas, levaram Dr. Umbig a deslocar-se ao continente africano, onde permaneceu por longo período, num incansável trabalho para qualificar as suas pesquisas.
Lá, como cá, permaneceu em organizada introversão, desprezando os insumos da ciência da comunicação, dedicando-se à realização das suas tarefas de campo, que se estenderam por horas e horas. Como passo seguinte, debruçou-se sobre as impressões obtidas e notou que havia muita semelhança de comportamento entre os homens dos diversos continentes. Observou que o que variava era o grau de civilização e de cultura. Percebeu estágios distintos e componentes próprios nos diferentes grupamentos humanos. Mas, no fundo dizia a si mesmo: É tudo farinha do mesmo saco! . A sua confissão orientava-se por esses limites, agravando as dificuldades e nocauteando o interesse dos demais em conhecer a verdade “umbiguiana”.
Era um pesquisador de verdade: colhia os dados empíricos, tabulava, ordenava e sistematizava-os, promovendo a devida abstração conceitual. Associava indução e dedução. Esse caminho foi percorrido exaustivamente pelo Mestre, afinal de contas não enxergava salvação para o homem fora das exigências da ciência, isso nas questões terrenas… E não misturava ciência com religião, é preciso registrar, por amor aos fatos. Entendia que cada uma tinha o seu compartimento próprio e adequado.
Não se deixou convencer pelos ensinamentos da Escolástica, de São Tomas de Aquino. Preferiu separar os terrenos: as questões da fé e do espírito de um lado; de outro, os conhecimentos advindos da experiência, da lógica formal e da indução. A razão deveria estar a serviço destes últimos, sem jamais envolver-se com os primeiros, era esse o juízo que formou. Era uma crítica a São Tomás de Aquino, não admitida por ele explicitamente, porém as suas palavras falavam por si.
Tempos depois, aqui por estas plagas, chegou a notícia de que o Dr. Umbig havia encontrado a contragosto o “estado transcendental”, migrando para outra dimensão. Usando uma expressão de gosto popular: havia batido com as dez, acometido de grave doença naquele continente.
Essa notícia causou muito reboliço. Os seus algozes renovaram o estoque de mau agouro, não admitindo que pudesse ter partido sem deixar pistas das suas descobertas. Maldição que se reafirmava agora com mais ênfase ainda, já que permaneciam obcecados cada vez mais pela dúvida.
A verdade só floresceu totalmente despida, após a leitura de seu testamento, que autorizou a publicação “post mortem” de seus trabalhos recém concluídos. Descobriu-se que as suas pesquisas atestaram um conhecimento psicológico ainda inédito acerca do ser humano: toda a explicação a respeito da psicologia humana se resume ao Umbigo.
Segundo a sua tese, os seres humanos estão assim constituídos: uns somente olham para o umbigo dos outros, desprezando o próprio; outros só enxergam o próprio umbigo; e, finalmente, outros não enxergam nem o próprio umbigo, nem o umbigo dos demais. Sobre as estatísticas dessa conclusão, ficou uma grande dúvida. Talvez, deliberadamente o Mestre tenha deixado a julgamento dos leitores a tarefa complementar de atribuírem os devidos números e percentuais.
Ou, pela omissão, é possível que tenha pretendido emparelhar os grupos. Quem sabe?
Como um apóstolo do niilismo, Dr. Umbig solicitou também que fosse consignada a exigência de ser esculpida em sua lápide mortuária a seguinte frase: “Aqui está sepultado alguém que absolutamente nada espera dos umbigos, dos alheios e do próprio*. Convicção formada por pesquisas consistentes e duradouras”.
Jean Paulo Sartre, o Existencialista, em face dos destinos desta narrativa, num esforço suplementar e sintético, em consonância com a sua obra dos primeiros tempos, poderia dizer: “Os umbigos em geral determinam a sorte do umbigo particular”. Imposição necessária de interpretação da sua antológica frase: “O inferno são os outros”.
A liberdade é assunto a ser buscado fora do alcance dos umbigos, conclui convictamente o autor.
* O julgamento que Dr. Umbig fez do próprio umbigo, certamente está embasado na teoria de Sartre.
Márcio Florestan é promotor de Justiça em Mato Grosso