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Cacarecos, Ninharias e Sonho

Emanuel Filartiga é promotor de Justiça naa comarca de Rio Branco - MT
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Hoje encontrei Mário. Ele cata as coisas no lixão da cidade, junto da esposa; eles são catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, montados numa moto CG com uma carretinha reboque – que na lateral exibe o seguinte aforismo: “a verdade é uma desordem… Alguém tem dúvida?”.

Ele trabalha na bagunça, transporta a bagunça e é um homem de paz; mais útil do que muitos que trabalham na ordem, isento de qualquer sujidade, impureza ou mancha – de resíduos sólidos.

Manuel de Barros me ensinou que as coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. Aprendi com minha mãe que as coisas simples, as que não levam a nada, cada coisa comum, têm relevância. Mario me disse que cada coisa sem préstimo tem seu lugar na sua carretinha filosófica.

O catador, de cabeça baixa, como numa prece, disse – aquilo foi direto no meu coração – “carrego todo tipo de tralha e carrego um sonho dentro de mim”.

Tudo o que é desprezado, considerado inútil, rejeitado, não aceito, posto de lado por muitas, muitas mesmo, pessoas é jogado fora e vai para o lixão. Mas, a eterna contradição humana, que nos é muito querida, mostra que essa não é toda a realidade: para trecheiros, catadores de lixão, catadores individuais, catadores organizados, os resíduos sólidos têm muita importância, valor econômico, social e de cidadania.

O trabalho braçal que envolve o ofício é intenso – além de movimentarem carroças, reboques em perímetro urbano, os catadores também são responsáveis pelo recolhimento, transporte e a triagem dos resíduos sólidos.

Conhecemos a Ordem Jurídica: da responsabilidade compartilhada pelo ciclo dos produtos dos fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores, dos titulares de serviços públicos etc; do princípio da cooperação das diferentes esferas do poder público, setor empresarial e demais segmentos da sociedade e da visão sistêmica, que deve considerar as variáveis ambientais, sociais, culturais, econômicas, tecnológicas e de saúde pública na gestão dos resíduos sólidos.

É sabido que toda norma jurídica é – ou quer ser – quase sempre uma resposta a determinado problema social, uma solução para algo que está a demandar provimento normativo. Entretanto, em uma visita breve em qualquer lixão do Brasil, num balançar de olhos entre o que se fez e o que ainda se espera fazer, veremos que o trabalho de Mário é o mais real, o mais verdadeiro “ato de política pública”.

Não por outro motivo, talvez, que os catadores de resíduos sólidos reutilizáveis ou recicláveis foram mencionados na legislação que trata da matéria mais de 10 vezes.

Sendo os protagonistas do processo de controle do lixo, pelo menos na vida real, os catadores oferecem os serviços de coleta, recuperação e reciclagem, enfrentam doenças infecciosas, chorume e gás metano, diariamente.

Essa conexão que eles têm com os lixos, às vezes, até afasta pessoas, muita gente não sabe o papel (o papelão, o plástico, o alumínio, o ferro…) real dos catadores em nossa sociedade.

Em nossas relações descartáveis, onde até gente fica descartável, a humanidade está num imenso vazio. E no local em que os resíduos sólidos são jogados nós vimos isto: poderia haver mais lixo lá, só não há porque Mário está lá com seus cacarecos, ninharias, e seu sonho.

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