quinta-feira, 2/maio/2024
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Apenas por força da lei

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É suspeitoso quando um governo quer fazer valer verdades históricas por força da lei. Mais ainda quando, face às discussões acerca da desmilitarização das polícias militares no Brasil, o Estado de Mato Grosso, através de lei n. 9.768/2012, queira fabricar uma polícia militar em 1720. Basear-se no argumento de que a "Companhia de Ordenanças" força de 3.ª linha em Portugal constituiria na atual Polícia Militar é um absurdo!

Analisemos esta nova verdade histórica levando em consideração o conceito que o historiador francês Michel de Certeau usa para definir história, ou melhor, historiografia (palavra indissociável do nome da disciplina), que é a "combinação de um lugar social, de práticas "científicas" e de uma escrita."(2)

Assim, em primeiro lugar, precisamos saber o lugar social de quem enuncia uma verdade. É preciso ter em mente que, se se trata de um trabalho científico, no mínimo a publicidade dos dados precisaria ser realizada para que estes fossem arguidos, avaliados e depois aceitos. Senão vejamos.

Segundo notícia do site da ASSOADE-MT(3) , a propositura do Projeto de Lei 749 que muda a data oficial de criação da Polícia Militar em Mato Grosso parte do trabalho de conclusão de curso do tenente-coronel Wilame Alves de Almeida sob a orientação do historiador (não foi encontrado nenhum Currículo Lattes informando a formação em nível superior deste oficial da PM) coronel Pedro Sidney Figueiredo de Souza. Ou seja, tratam-se de militares – o que não desmereceria a pesquisa. Entretanto, não houve a publicação alguma para a análise dos pares (outros historiadores). Em outras palavras, por se tratar de uma suposta pesquisa em história, para ser validada, ela precisaria ultrapassar a cerca da instituição em que foi produzida e ser arguida por outros historiadores quanto ao uso das fontes, conceitos e da própria escrita. E isso nos leva ao segundo ponto de nossa análise.

Quais foram as fontes da pesquisa? Paira a dúvida. Nunca se ouviu falar no meio acadêmico (revistas, jornais, livros, etc.). Nem mesmo no site oficial da Academia da Polícia Militar Costa Verde, que chegou a editar – ou ainda edita (?) – uma revista de cunho científico "Homens do Mato" consta qualquer publicação a respeito. É bem verdade que o site está em construção, entretanto, a publicidade se daria ainda por outros meios: participação em seminários, encontros, conferências de história, já que se trata de uma pesquisa nesta área.

Particularmente, desconfio de uma pesquisa cujo resultado é um contra-senso historiográfico: a Polícia Militar de Mato Grosso é mais antiga que a principal força militar do Estado brasileiro, o Exército, fundado em 1822.

Em terceiro lugar, seria necessária uma análise da escrita, momento em que a prática historiográfica se dá de fato; e em que o historiador relaciona suas fontes e sua escrita, desdobrando-a. Todavia, seria preciso ler o trabalho deste pesquisador. Ficamos, porém, com a pura afirmação de que a Polícia Militar tem como sua data oficial 06 de novembro de 1720. Aqui, pela efeméride, parece referir-se ao "Termo que fizeram os primeiros exploradores que se acharam nas minas do Cuyabá" um dos documentos mais antigos da Superintendência do Arquivo Público sobre Mato Grosso. Trata-se de um documento que cita Fernando Dias Falcão como capitã-mor de ordenanças. Neste caso, nosso "historiador" deve ter considerado a presença de um oficial da companhia de Ordenanças como o primeiro membro militar no que viria ser Mato Grosso. É preciso ressalvas.

Primeiramente, é preciso dizer que a Companhia de Ordenanças era a força de terceira linha do Exército Português, não brasileiro. Devemos pensar que as pessoas daquele século sequer sonhavam que um dia o Brasil, como Estado soberano, viesse a existir. Com base neste argumento, poderíamos dizer que aqueles que habitavam o Brasil eram desde antes da sua independência cidadãos brasileiros. O que não é verdade, pois o processo de Independência do Brasil consistiu, além da Guerra de Independência, na fundação e consolidação do Estado brasileiro em 1822.

Em notícia no site do Correio de Mato Grosso de 29 de junho de 2012, chega-se ao descalabro de afirmar que a Polícia Militar existiu com outros nomes, tais como, "Ordenança, Guarda Municipal Permanente, Corpo Policial, dentre outros".(4)

Ora, papel de polícia exerceram diversas organizações militares e para-militares. Por exemplo, no século XIX, durante o regime imperial, exercia a função policial também a Guarda Nacional, força civil de caráter militar criada em 1831 para defender a fronteira, a monarquia e a Constituição do Império, atuando como força de segunda linha do Exército. Sua criação e atuação deveu-se sempre às suspeitas da elite civil em relação ao Exército Brasileiro. Nesta lógica do tenente-coronel Wilame Alves de Almeida a Guarda Nacional seria também um dos nomes da polícia militar em Mato Grosso? O que, obviamente, incorreria em inverdade.

A Polícia Militar em Mato Grosso é uma instituição criada no contexto da desastrosa organização do federalismo brasileiro durante a Primeira República (1889-1930). Embora "Homens do Mato", "Companhia de Pedestres" ou mesmo "Companhia de Polícia", entre outros nomes, tenham exercido a função de polícia; estas denominações implicavam muito mais na manutenção da ordem escravocrata contra fugas e revoltas dos escravos na então Província de Mato Grosso. O maior temor da época era uma reprodução no Brasil da independência do Haiti, em fins do século XVIII, em que os escravos mataram e expulsaram todos os brancos.

Na República, a Força Pública terá um caráter muito mais ligado ao fato de ser usada como um contrapeso nas mãos do Presidente do Estado de Mato Grosso. Os temores dos entes federados de então eram as possibilidades de intervenção do Governo Federal. Não era exatamente uma força policial. Até por que, a Força Pública convivia lado a lado com a Chefatura de Polícia que possuía seus agentes policiais, guardas de quarteirão e delegados e subdelegados de polícia. O que nos obriga a dizer que o Chefe de Polícia é quem realmente garantia a segurança pública de então – inclusive os orçamentos da Força Pública (o que seria hoje Polícia Militar) e da Segurança Pública (Chefatura de Polícia) eram separados.

No caso da Força Pública, tirando o oficialato, as praças e suboficiais nem profissionalizados eram. Muitas vezes cumpriam pena ou se alistavam voluntariamente, seguindo posterior "carreira". A maioria era analfabeta, o que corrobora o decreto n. 788, de 24 de Dezembro de 1927, com a criação das "Escolas Regimentais da Força Pública" juntamente com a "Escola Policial Militar". A função desta última, era "habilitar os sargentos da Força Publica com o curso necessario á promoção ao posto de 2.º tenente"; já a primeira tinham "por objectivo ministrar o ensino de primeiras letras ás praças analphabetas e preparar materias não essencialmente militares as praças candidatas aos exames de promoção aos postos de cabo e sargento".(5) Eis um belo objeto de pesquisa para futuros historiadores.

Mas se o conhecimento historiográfico contradiz a lei 9768/2012; por que a lei ao arrepio da Ciência? A resposta não é tão simples. É preciso se ater ao momento em que a lei é editada. Há no Congresso Nacional, hoje parada no Senado Federal, uma Proposta de Emenda à Constituição Federal (PEC) n. 102, que versa sobre a desmilitarização das PMs e unificação das Polícias(6) ; mais ainda, as vozes advindas do relatório da ONU que recomenda o fim da Polícia Militar e seu tribunal militar(7) . Estas vozes contrárias à PM incomodam principalmente seu oficialato, já que a grande maioria, 60% numa pesquisa que ouviu mais de 64.130 policiais militares, acham inadequada a vinculação ao Exército; e onde 73,3% dos militares de baixa patente questionam as injustiças da hierarquia.(8) Neste caso, reforça a presença da Polícia Militar como uma instituição supostamente de quase três séculos de existência, respaldando sua permanência. O que parece absurdo, se pensarmos que a escravidão durou muito mais que trezentos anos, prestando "relevantes" serviços aos senhores de terra, e nem por isso foi mantida.

Lauro Portela- Professor e Historiador com mestrado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente é Técnico da Área Instrumental do Governo, perfil de nível superior Historiador, atuando na Gerência de Microfilmagem responsável pelo acervo iconográfico da Superintendência do Arquivo Público.

 

 

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