Era de se esperar que as cidades e os cidadãos brasileiros, para sediar o mundial de 2014, tivessem que se adaptar a algumas exigências da FIFA, entidade privada que se declara proprietária do futebol mundial. Mas parece que a realidade, esboçada no projeto da Lei Geral da Copa, encaminhado pela presidente Dilma ao Congresso, vai bastante além do aceitável ou suportável.
Não era segredo para ninguém que a FIFA exigiria incentivos e isenções fiscais diferenciados para trazer ao Brasil o maior espetáculo esportivo da terra, e justamente por isso também um negócio comercial extraordinário. Exigências como franquias para vistos de entrada no país, exclusividade para a comercialização de determinados produtos, publicidades e coisas do gênero, de tudo isso já se tinha alguma noção desde a escolha do Brasil para sediar o mundial. Mas nada que jogasse por terra as conquistas do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, e do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671), de 2003, muito menos que atentasse contra a soberania nacional – e, então, contra a própria Constituição da República, de 1988, – como parece querer a FIFA.
Conforme já denunciado por alguns setores, a exemplo da OAB, disfarçadamente vai se traçando um tribunal de exceção para vigorar especificamente em torno da Copa das Confederações, em 2013, e da Copa do Mundo de 2014, e exclusivamente para proteger os interesses econômicos da empresa suíça comandada pelo também suíço Joseph Sepp Blatter. Sim, porque o Projeto levado ao Congresso cria sanções civis e novos tipos penais, de índole notadamente econômicos, especialmente para estes eventos, com vigência limitada a 31 de dezembro de 2014 e visando supostamente “proteger” os estrangeiros dos brasileiros, sem nenhuma reciprocidade, como se vê de toda a sua Seção V.
Ali está elencada uma série de “crimes relacionados aos eventos”, como a “utilização indevida de símbolos oficiais” (arts. 16 e 17), “marketing de emboscada por associação” (art. 18) e “marketing de emboscada por intrusão” (art. 19). Ainda, para determinados delitos previstos no Código Penal Brasileiro que já sejam sancionados com pena de multa, esta poderá ser reduzida ou aumentada em até dez vezes quando os delitos forem relacionados àquelas duas competições.
A recíproca não é, nem de longe, verdadeira. O art. 43 do Projeto estabelece que aplicam-se a estas duas competições, “no que couber”, as disposições do Estatuto do Torcedor, “excetuado o disposto nos arts. 13-A a 17, 19, 24, 31-A, 32, 37 e nas disposições constantes dos Capítulos II, III, IX e X da referida Lei”. Os artigos 13-A a 17 do Estatuto, por exemplo, tratam da segurança de torcedores participantes de eventos esportivos, estabelecendo este último dispositivo que “é direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes a segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos”. Dessa garantia se pretende privar o torcedor, certamente para se evitar a possibilidade de eventuais cobranças contra a FIFA.
Já o Capítulo II do Estatuto, o qual também se pretende afastar em benefício da FIFA, tem como título “Da Transparência na Organização”, e o Capítulo X, “Da Relação com a Justiça Desportiva”. Querer afastá-los não é intenção que mereça elogios.
Mas ainda vem o parágrafo único do mencionado art. 43 do Projeto estabelecer que “para fins da realização das Competições, a aplicação do disposto nos arts. 2-A, 39-A e 39-B da Lei nº 10.671, de 2003, fica restrita às pessoas jurídicas de direito privado ou existentes de fato, constituídas ou sediadas no Brasil”. Quem buscar o texto do Estatuto vai ver que estes dispositivos preveem sanções – como a proibição de frequentar os demais jogos- para os torcedores e torcidas organizadas que promoverem tumultos durante competições nos estádios. Ou seja, se a baderna e a quebradeira forem promovidas pelas organizadas nacionais haverá punição. Se pelas torcidas organizadas estrangeiras (lembram-se dos hooligans da Inglaterra?), afastam-se as penas do Estatuto do Torcedor.
Mas o pior pode estar por vir. O Presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, denunciou no último dia 14, em artigo na revista Consultor Jurídico, que a FIFA estaria fazendo mais (absurdas) exigências ao Governo Federal, que podem aportar ao Projeto na forma de emendas. Seriam elas: (i) a suspensão da eficácia do Código de Defesa do Consumidor durante a realização dos jogos; (ii) a permissão de venda casada de produtos diversos; (iii) a punição para quem desistir da compra de um ingresso; (iv) a não exigência de cobrança de meia-entrada a estudantes e idosos; (v) a permissão de venda de bebidas alcoólicas nos estádios, que é vedada pelo Estatuto do Torcedor; (vi) a majoração das penas para quem falsificar produtos oficiais da Copa.
Como se vê, nosso Governo, antes do arroubo ufanista de querer ensinar ao FMI e à União Europeia como superar a nova crise econômica mundial, deveria cuidar de assegurar nossa soberania contra as investidas cada vez mais crescentes da FIFA. Ou então a entidade privada vai se fartar às custas do nosso público.
José Renato de Oliveira Silva é advogado, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/MT e professor do Curso de Direito da UNEMAT.
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A Copa é nossa mesmo?
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