Nas rádios da Bahia e do Maranhão a proposta de emprego parece tentadora. O salário é de R$ 450, mais hora extra, pensão para criança mediante apresentação do cartão de vacina. Alojamento gratuito. O trabalho é em uma fazenda no município de Alto Garças, em Mato Grosso. Cerca de 180 trabalhadores, que vivem em condições precárias, encaram o anúncio como a oportunidade de suas vidas. Eles alugam 4 ônibus, que chegam lotados em Mato Grosso.
Mas o tão sonhado “Eldorado” se transforma em um pesadelo. Estes trabalhadores encontram, na verdade, uma situação degradante. Ficam alojados em um galpão. Ao lado, outro armazém, onde o proprietário da terra guarda o seu produto que chama de “mais valioso”. Trata-se do veneno que será aplicado na plantação.
O cheiro é insuportável e toma conta do “alojamento”. E vem a pior das notícias: cada um vai receber R$ 200 ao mês, por 8 horas de trabalho diário. Mas de fato não recebem nada. O veneno, além de estar ao lado do “quarto”, é jogado na plantação por avião, e os trabalhadores não possuem qualquer equipamento de proteção. Quem fica doente, tem que trabalhar da mesma forma, caso contrário passa o dia sem alimentação. “Só come quem trabalha”, declara o trabalhador João Batista de Souza Silva.
No local não há condições de higiene, não existe atendimento médico. A água é servida em um tonel, que era recipiente de pesticida. Os trabalhadores ficam endividados e não podem ir embora.
Esta é apenas uma das histórias que estão nos 12 processos criminais que tramitam na Justiça Federal de Mato Grosso contra o trabalho escravo no Estado. Ao todo, 124 empregados submetidos a condição análoga à escravidão foram libertados em maio de 2005 na Fazenda Brasília, onde a situação relatada acima aconteceu.
E histórias como esta continuam se repetindo até hoje. E cada dia, muito mais próximo do que cada um imagina. Isso um século depois do trabalho escravo ter sido “oficialmente” abolido no país.
Em julho do ano passado a reportagem de A Gazeta flagrou no centro de Cuiabá uma obra que mantinha trabalhadores em condição degradante. Um mês depois, a Superintendência Regional do Trabalho (SRTE) reconheceu como o primeiro caso de trabalho escravo em área urbana de Mato Grosso.
O questionamento que a sociedade faz é como esta prática continua. E uma das respostas é clara: a impunidade alimenta o crime.
De 1995 a 2008 foram libertados em Mato Grosso 5.257 trabalhadores em condição análoga à escravidão. (ver quadro das libertações).
Em contrapartida, apenas 12 processos para responsabilização criminal tramitam na Justiça Federal. Destes, 2 já tiveram sentença em primeiro grau, mas os acusados recorreram.
Ninguém está preso e não há previsão de prisão. A pena para este crime é de no máximo 8 anos. Como a maioria dos infratores são primários e possuem bons antecedentes, acabam sendo condenados a menos de 4 anos e conseguem a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito.
Foi o que aconteceu com Raimundo Alves de Oliveira e Sebastião da Silva Mattos Filho, condenados a 4 anos em maio de 2004, sendo a pena convertida em restrição de fim de semana e prestação de serviço à comunidade. Entretanto, os réus recorreram ao Tribunal Regional Federal, 1ª Região, e nem isso pagaram.
O outro caso de condenação em Mato Grosso também aconteceu no ano de 2004. Epaminondas Mariano dos Reis teve a pena fixada em 2 anos de reclusão, em regime semi-aberto. Ele também recorreu ao TRF e naquela época ainda havia a discussão sobre de quem era a competência para julgar crimes de trabalho escravo. O TRF acabou anulando a pena e mandando o processo para a Justiça Estadual.
Epaminondas cumpria a função conhecida como “gato”. Trouxe de Goiás 17 trabalhadores, que na Fazenda Jaó, em Nova Xavantina, tiveram que dormir no meio da mata, em tendas cobertas com lona preta e camas improvisadas com troncos finos de madeira. Eram ameaçados de morte e não tinham como sair da fazenda. A cidade mais próxima ficava a 65 km. Estes trabalhadores foram resgatados em março de 2001.
Por este crime ainda respondem criminalmente Romes Faria da Costa e Roberto Guidoni Sobrinho. O último, proprietário da terra, afirma que desconhecia a situação dos trabalhadores.
Nos outros 10 casos, ainda não há decisão. Em um deles, o proprietário da terra já morreu e, com isso, o processo será extinto. É o caso de Carlos Antônio, dono da Fazenda São Carlos em Nova Ubiratã. O outro réu, Maurício Santino Teixeira, que foi responsável por aliciar os trabalhadores, cumpre pena de prestação de serviços. (veja quadro dos processos)
A situação jurídica dos “escravagistas” em Mato Grosso não se difere do quadro nacional. Até hoje, as condenações penais no Brasil são ínfimas. Por isso, a sensação de impunidade surge. E não é apenas uma sensação. Esta impunidade é confirmada pelas próprias autoridades que cuidam dos casos.
O juiz da 1ª Vara Federal de Mato Grosso, Julier Sebastião da Silva, em entrevista exclusiva ao Jornal A Gazeta, afirma que a pena aplicada a este tipo de crime é branda. Ele não defende mudanças na legislação, como muitas pessoas fazem, e destaca que o importante é o Brasil cumprir o que está na lei.
O magistrado destaca que a primeira questão é que os inquéritos e processos precisam ser finalizados em tempo tolerável e que a repressão por parte do Poder Executivo tem que ser mais presente. “Acho que já há instrumentos jurídicos adequados para esta questão. Temos que nos preocupar com o funcionamento do que temos. Acho que a pena poderia ser um pouco mais alta, mas no ponto de vista normativo não há mais o que possa melhorar. O Estado brasileiro tem que trabalhar com o que tem, botar para funcionar suas instituições, seus instrumentos legais, e que a polícia e justiça sejam menos morosos. Do que adianta exacerbar a pena se não há condenação? Hoje precisamos do julgamento destes processos”.
Julier enfatiza que este é o primeiro passo para diminuir a impunidade. Ele acredita que com as mudanças na Legislação Processual Penal os processos serão mais céleres. “Talvez deva aguardar um pouco esta experiência. Dar cumpritute a estes instrumentos legais. Muda a lei, mas o fundamental é que continua a impunidade. Não adianta falar em pena se não há condenação. O importante é que seja um pouco disso, as investigações, as ações penais, porque daí sim vamos verificar em concreto se a pena é adequada ou não”.
Já o juiz da 5ª Vara Federal de Mato Grosso, José Pires da Cunha, defende um tratamento mais rigoroso para este tipo de crime, a exemplo do que acontece com o tráfico de drogas.
Competência – Após longos anos de discussão, a Emenda Constitucional 45 determinou que cabe a Justiça Federal julgar e processar os crimes de trabalho escravo. Isso aconteceu há cerca de 2 anos, quando o Supremo Tribunal Federal sacramentou esta decisão, dizendo que o trabalho escravo é vinculado aos crimes contra a Organização do Trabalho e portanto é competência federal. Não há levantamento de processos criminais deste tipo de crime tramitando na Justiça Estadual de Mato Grosso, mas se existirem terão que ser encaminhados para a Justiça Federal. Para Julier Sebastião, o ideal é que um processo dure em média 2 anos, quando não há réu preso.
E aí, percebe-se que a discussão sobre a competência ainda não foi superada. A Justiça do Trabalho entende que poderia ser dela também a responsabilidade pelos processos criminais. O coordenador nacional da Erradicação do Trabalho Escravo, procurador Jonas Ratier Moreno, em entrevista A Gazeta, diz esperar que o Brasil chegue ao ponto de que estes processos sejam julgados em questão de meses. Ele considera um avanço o fato da Justiça Federal estar julgando os crimes, pois pontua que os juízes federais não estão sujeitos às pressões locais. “Mas a Justiça ainda caminha a passos lentos. O sistema processual está em crise. São muitos recursos e um bom advogado vai usar todos. Só no campo civil são 44 recursos possíveis” e acrescenta: “pensamos que em um futuro seja julgado pela Justiça do Trabalho, que é mais célere”.
O procurador, da mesma forma que Julier, enfatiza que a pena precisa ser aplicada e os escravagistas, desta forma, já começariam a ser punidos. “Mas ficamos neste limbo de quem era a competência por muito tempo e muitos processos ficaram sobrestados”.
Ele ainda enfatiza que no Brasil ninguém vai para a cadeia efetivamente e o excesso de benefícios “facilita a impunidade”. “A lei não pode beneficiar. Solta grupo para passar Natal em casa e não volta. Falta que as penas sejam efetivamente cumpridas. Para a sociedade, ver isso, é muito complicado. E não é só com o trabalho escravo. A Lei de Execuções Penais é falha. Cumpre pena apenas a pessoa que for presa em flagrante e que é pobre. Geralmente estão na cadeia aqueles que roubam para comer. Quem pratica trabalho escravo não fica preso um dia. O sistema nosso é falho e a sociedade paga um preço muito alto”.
Mudanças – O Projeto de Emenda Constitucional 438/2001 tramita na Câmara dos Deputados. Ele prevê, entre outras coisas, que o trabalho escravo seja considerado crime hediondo e que a terra, onde for flagrado este tipo de crime, seja expropriada.
Para o procurador Jonas Ratier, estas mudanças pesarão para a prática e serão inibidoras, principalmente porque vai “atacar o bolso” do escravagista. “Estas pessoas acreditam que não vão parar na cadeia, mas quando tiverem seu bem ameaçado, vão pensar mais antes de cometer o crime”. Entretanto, o procurador acredita que na atual legislatura não haverá avanço na votação da PEC.
Na avaliação do juiz federal Julier da Silva não é por meio da exacerbação da lei que os escravagistas serão efetivamente penalizados. “Normalmente no Brasil tende-se a exacerbar algumas situações. A própria lei de Crimes Hediondos é resultado de uma exacerbação da época, do sequestro de um importante empresário no Rio de Janeiro. Eu acho que o que há necessidade é de se tornar mais ágil os instrumentos de processo em relação a estes crime, e talvez se trabalhar um pouco melhor na questão da pena. Não sei se há necessidade de inclusão em crimes hediondos, até porque já é violação aos Direitos Humanos e o Brasil, independente de ser hediondo ou não, tem responsabilidades internacionais. Dar o nome de crime hediondo não vai impedir, porque é uma violação aos diretos humanos grave e cabe ao Brasil fazer cumprir os princípios de Direitos Humanos”.
O juiz federal José Pires faz uma análise mais do ponto de vista processual e destaca que transformando em crime hediondo o cumprimento da pena passaria a ser fechado e a progressão de regime só seria possível após cumprido 3/5 da pena. Na sentença, o juiz ainda poderia decidir se o réu poderia ou não apelar em liberdade.
Quanto a expropriação da terra, Julier enfatiza que isso já está previsto no Código Penal Brasileiro e que não há necessidade de mudanças nas leis, apenas que o Ministério Público Federal faça este pedido para o juiz analisar. “O próprio Código Penal já diz que os meios utilizados para o crime, os produtos do crime e o instrumento do próprio crime podem ser perdidos para a União”.
Julier finaliza definindo o trabalho escravo como uma “violação grave dos Direitos Humanos e, portanto, como tal deve ser encarado pelo Estado Brasileiro como crime grave que enseja repressão e do ponto de vista moral e social é uma vergonha para o país”.
Mato Grosso – João Roberto Buzatto, da coordenação da Pastoral da Terra em Mato Grosso, afirma que só o fato do empresário ir para a “Lista Suja” (ver quadro) do Ministério Público do Trabalho e perder, por um determinado tempo, o direito de acessar recursos, não é suficiente para inibir o crime. Ele defende a expropriação da terra. Além disso, Buzatto aponta que o Estado precisa “deslanchar, fazer com que o Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo saia do papel e ter ações que envolvam toda a sociedade”.
Ele reforça a importância das denúncias e estima que há no Estado pelo menos o dobro de trabalhadores submetidos à escravidão do que os libertados. “Mais do que leis rígidas, precisamos de políticas sociais que atendam a população, para que estes trabalhadores tenham oportunidades em seus estados e não tenham que abandonar suas famílias atrás do Eldorado”.
O coordenador do Grupo de Fiscalização Rural da SRTE, Ademar Fragoso Júnior, também afirma que a impunidade estimula o trabalho escravo e aponta que o ideal é que o Ministério Público Federal participe das ações de resgate dos trabalhadores, como forma de agilizar as denúncias na parte criminal. Ele destaca que a fiscalização ganhou reforço no Estado a partir do ano passado, com a nomeação de 80 auditores e criação de 5 grupos.
Mais do que fiscalizar e punir, Fragoso também defende a necessidade de reinserção destes trabalhadores resgatados. Hoje, eles estão sendo inseridos no Bolsa Família e Mato Grosso tem um projeto piloto, com o Sistema Nacional de Empregos (Sine), para fazer intermediação de mão-de-obra. Ou seja, se uma propriedade no Estado precisar de trabalhador, vai procurar o Sine e este faz contado com os outros estados. A pessoa que sair do Maranhão ou Bahia, por exemplo, chega em Mato Grosso com a carteira assinada.