O dia 5 de dezembro começava a clarear. A postos, uma infinidade de agentes da Polícia Federal que vieram de várias partes do Brasil para executar a Operação “Arca de Noé”, idealizada após o juiz federal Julier Sebastião da Silva, da 1ª Vara de Mato Grosso, ter expedido vários mandados de prisões, buscas e apreensão a pedido do Ministério Público Federal, leia-se procurador José Pedro Taques. O alvo principal era a suntuosa residência no bairro Boa Esperança. Dali deveria sair preso e algemado o homem acusado de comandar o crime organizado em Mato Grosso: João Arcanjo Ribeiro, o controlador do “jogo do bicho” e dono de várias factorings no Estado. O verbo, porém, não se fez presente, sendo conjugado mesmo no pretérito imperfeito.
Quando os primeiros agentes entraram na casa, encontraram apenas a mulher de Arcanjo, Silvia Shirata. Pouco antes das 7h30, os agentes federais que comandavam a operação davam a notícia que frustraria todo o contexto de êxito da operação: o procurado não estava na sua residência. Aquela altura, João Arcanjo, que no domingo anterior foi “pintado” em rede nacional de televisão como o criminoso mais influente de Mato Grosso, seguia para um rumo que só foi descoberto quatro meses depois, num bairro de classe média alta nos arredores de Montevidéu, capital do Uruguai.
Assim que perceberam que Arcanjo era um homem não encontrado, a Polícia Federal, com o auxílio da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Militar, fechou as saídas da cidade. O Aeroporto Marechal Rondon, onde um jato executivo Cessna-Citation, de propriedade de Arcanjo estava estacionado, também foi ocupado por agentes federais. Todos os sistemas de informações estavam de alerta: o criminoso precisava ser preso para que a Operação “Arca de Noé”, com alguns efeitos cinematográficos, pudesse chegar ao seu final com todo o êxito possível. Arcanjo era procurado “vivo ou morto”. Tudo, porém, em vão.
O dia passou e ninguém tomou conhecimento do paradeiro do procurado. Os mandados de prisão foram cumpridos em sua totalidade. Várias pessoas – acostumadas com as colunas sociais – foram presas. Algumas ainda estão no presídio. Caixas e mais caixas de documentos e computadores foram retirados das empresas de negócio de Arcanjo. O símbolo maior do poder do “comendador”, o globo das extrações do jogo do bicho e a figura do pássaro Colibri, estavam espremidos entre tantos outros objetos, boletos e anotações. No 5 de dezembro de 2002, a zebra foi o bicho do dia, tanto para o império de Arcanjo que ruiu como uma implosão, como também para a operação.
Mas a história estava apenas começando. E com elas, também, as especulações. Algumas até fantasiosas. Não faltou gente para dizer, por exemplo, que um helicóptero baixou no bairro Boa Esperança e levou Arcanjo. Falaram também que ao perceber a operação, o criminoso teria se utilizado de um túnel para fugir – mesmo deixando para trás a esposa e filhos. Dava-se como certo que havia “vazamento” de informação e Arcanjo ficou sabendo antes de tudo começar. Na revolta, Pedro Taques anunciou a abertura de inquérito para apurar a questão. Até hoje o resultado não saiu.
Do fatídico 5 de dezembro de 2002 até agora tudo já se fez. Arcanjo foi condenado por porte ilegal de armas, tem contra si diversas acusações de crimes de mando, inclusive do empresário Domingos Sávio Brandão de Lima, que era proprietário do jornal “Folha do Estado”, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisa, crimes fiscais e contra a ordem econômica, enfim. Tudo já se sabe e se atribui a João Arcanjo. O que não se esclareceu, porém, é como esse homem conseguiu escapar das garras da Polícia Federal brasileira, numa operação teoricamente bem planejada e montada sobre grande sigilo, chegou ao Uruguai e lá se vê, mesmo preso, a salvo.
“Eu estava em Goiânia no dia da operação” – diz Arcanjo. Ele afirma que deixou a cidade três dias antes de operação. Sem aparente preocupação com o tema, o preso diplomático diz que saiu da cidade após a saraivada de acusações que haviam feito contra sua pessoa. Na capital de Goiás, Arcanjo foi visitar alguns parentes que não os via há alguns anos. Seu retorno a Cuiabá estava previsto para aquele dia 5 mesmo. No entanto, ao tomar conhecimento do que se passava pelo bairro Boa Esperança, fugiu. “Sabia que seria preso” – destacou. Com negócios no Uruguai, onde mantinha sociedade numa off-shore, o caminho foi quase que natural. Ele só não revela o traçado que fez.
Arcanjo não esconde o desconforto com a dúvida sobre seu paradeiro naquele dia. Ao negar que fugiu, impõe aos homens que planejaram toda a operação uma pequena pecha, não de incompetência, mas, possivelmente, de falta de cuidado. Afinal, ele era o principal alvo da operação e deveria estar sendo vigiado por agentes federais. Arcanjo diz que escapou de maneira simples, sem grandes artifícios, sem as conspirações que uma trama como essa geram no campo das incertezas. Mas é sua palavra. Verdade ou não, é o que ele diz.