Em parecer encaminhado nesta quinta-feira ao Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral da República, Augusto Aras, opinou pela declaração de inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, da Lei 11.034/2019, de Mato Grosso. A norma prevê a concessão de cota adicional de 2% das vagas oferecidas em concurso público para pessoas com síndrome de Down.
O entendimento considera o fato de que, mesmo tendo como propósito ampliar o acesso de pessoas com deficiência ao trabalho, a norma fere o princípio da isonomia. É que a lei, segundo Aras, não apresenta “justificativa racional” para a escolha das pessoas com síndrome de Down, entre as deficiências intelectuais, como destinatárias exclusivas da reserva adicional de vagas para cargos públicos.
A manifestação do procurador-geral foi apresentada em uma ação proposta pelo governador Mauro Mendes (DEM). Ao questionar a norma, o chefe do Executivo do Estado argumentou a existência de vício de iniciativa e inconstitucionalidade material. A lei chegou a ser vetada, mas a restrição foi derrubada pela Assembleia Legislativa. Ao analisar os argumentos, o PGR rebate a alegação de que a proposta não poderia ter sido apresentada por deputado, pontuando tratar-se de matéria decorrente diretamente do texto constitucional. Já em relação ao mérito, entendeu que, ao escolher pessoas com síndrome de Down, a norma traz prejuízo às demais pessoas com deficiência.
O PGR destaca também a importância da inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, propósito previsto em um vasto conjunto normativo nacional como a própria Constituição Federal e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). Também menciona trechos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, e que tem força de emenda constitucional. A convenção prevê obrigações do Estado em reconhecer o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com os demais cidadãos, em ambiente aberto, inclusivo e acessível. O PGR salienta que essa garantia, nos setores público e privado, é “medida concretizadora da dignidade humana”.
No entanto, afirma que, mesmo entre as deficiências intelectuais, conceder privilégio indiscriminado e sem justificativa com amparo constitucional afronta o princípio da isonomia. “O objetivo de promover e viabilizar a ocupação laboral das pessoas com síndrome de Down não prescinde do respeito à isonomia como exigência de tratamento igualitário, bem como proibição de tratamento discriminatório”, diz o chefe do Ministério Público da União (MPU) no parecer.
Outro aspecto analisado pelo procurador-geral na manifestação foi uma eventual decisão judicial que estendesse as pessoas com outras deficiências, o acesso às vagas reservadas (2%). Nesse caso, ocorreria uma decisão interpretativa com eficácia aditiva. No entanto, conforme explica, essa interpretação à luz da Constituição, não pode alterar o conteúdo ou o sentido inequívoco da norma.
“Uma vez que a Lei estadual 11.034/2019 teve o propósito exclusivo de conceder cota adicional de 2% das vagas de concurso público para pessoas com síndrome de Down, não compete ao Judiciário estender o benefício para as demais pessoas com deficiência ― nem mesmo consideradas as deficiências de igual natureza―, sob pena de atuar como legislador positivo”.
Apesar de ser inconstitucional, o parecer é no sentido de que a lei não seja declarada nula, mas seja mantida válida. Ao defender que não haja a pronúncia de nulidade da lei matro-grossense, Augusto Aras citou o princípio do não retrocesso, cujo propósito é proteger os direitos sociais conquistados por atos anteriores à norma questionada. A aplicação do entendimento ocorre quando há uma compreensão de que faz menos mal à Constituição a manutenção do ato inconstitucional que a sua total exclusão do sistema normativo, dado o risco causado pelo vácuo normativo para a regulação da vida em sociedade.