quinta-feira, 28/março/2024
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O contrato de arrendamento rural e a fixação do preço em produtos

Saul Duarte Tibaldi - Valter Fabricio Simioni Silva
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O CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL E A FIXAÇÃO DO PREÇO EM PRODUTOS: VALIDADE DA CLÁUSULA COMO RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA DO MICROSSISTEMA LEGISLATIVO AGRÁRIO

Resumo:Este artigo analisa a legislação agrária que regulamenta os contratos de arrendamento rural e defende a validade da cláusula contratual que fixa o preço em produtos quando não estiver configurada a vulnerabilidade socioeconômica do arrendatário, não houveronerosidade excessiva na relação contratual, ou na hipótese em que se verifique a consumação da supressio e surrectio. Como metodologia, emprega-se a interpretação sistemática e teleológica do microssistema legislativo agrário em substituição ao critério da especialidadedas normas.
Palavras-chaves:Contrato. Arrendamento rural. Fixação do preço em produtos. Validade. Interpretação sistemática e teleológica.
Sumário.
Introdução.
01. Fundamentos da proibição do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural e o aparente conflito com princípios e preceitos do Código Civil.
02. A  interpretação sistemática e teleológica como técnica correta para a solução da antinomia entre as normas de direito agrário e de Direito Civil na regulação do contrato de arrendamento rural.
03. Insubsistência da regra do art. 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66 diante da ausência de vulnerabilidade socioeconômica do arrendatário ou onerosidade excessiva no contrato de arrendamento rural e quando evidenciada a supressio e surrectio: implicações com a função social do contrato e da propriedade. 04. A validade da fixação do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural como resultado da interpretação sistemática e teleológica do microssistema legislativo agrário.Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução
A produção legislativa brasileira gera incoerências no ordenamento jurídico e insegurança a partir da dificuldade em se identificar, com clareza, quais regras incidem sobre os mais variados fatos jurídicos. Enunciados aparentemente desconexos com o todo estrutural normativo dão lugar a destoantes interpretações e, consequentemente, casos análogos postos a julgamento deságuam em resultados distintos, o que afronta o postulado da isonomia e esvazia a noção de unidade do sistema jurídico-normativo.

Essa verdadeira causa de deslegitimação da justiça deve ser minimizada não apenas por meio das clássicas técnicas de resolução de conflitos normativos – hierarquia, especialidade e cronologia –, mas principalmente com o emprego dos métodos interpretativos corretos, a fim de fazer incidir no caso em concreto as normas adequadas, eleitas por critérios seguros, previsíveis e transparentes, sob pena de não resolver satisfatoriamente os fenômenos antinômicos mais complexos que demandam aprofundada análise para sua exata compreensão e justa pacificação.
Não se pode perder de vista a noção de que o ordenamento jurídico de determinado Estado compõe um sistema normativo, portanto, a extração das normas não pode descuidar da análise sistêmica do conjunto normativo, oxigenado e direcionado também por princípios.É pontual a lição de Canaris, para quem a ideia de sistema jurídico justifica-se a partir dos princípios da justiça, igualdade e da segurança jurídica, exigindo a busca pela previsibilidade do direito, estabilidade e continuidade da legislação e da jurisprudência, e

todos esses postulados podem ser muito melhor perseguidos através de um direito adequadamente ordenado, dominado por poucos e alcançáveis princípios, portanto um direito ordenado em sistema, do que por uma multiplicidade inabarcável de normas singulares desconexas e em demasiado fácil contradição umas com as outras ((CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Editora Fundação Clouste Gulbenkian, 2012, 5ª ed, p. 22).

Partindo dessa importante premissa, é preciso desmistificar o paradigma da inviabilidade da pactuação do pagamento do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural, regra expressa no art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66 e referendada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (AgInt no Resp nº 1.397.715-MT – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T. – j. 12/09/2017; REsp nº 1.266.975-MG – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T. – j. 10/03/16 – DJe 28/03/16; REsp nº 231.177-RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª T. – j. 26/08/08 – DJe 15/09/08, dentre outros precedentes).

A conclusão pela nulidade da cláusula contratual que ajusta o preço do arrendamento rural em produtos – com fundamento na especialidadeda norma agrária em relação aos dispositivos e princípios do Código Civil – não revela a melhor solução jurídica para os inúmeros casos em trâmite no Poder Judiciário brasileiro por desconsiderar outras importantes circunstâncias, a exemplo da hipótese em que o arrendatário não se reveste da condição de vulnerável ou não haja onerosidade excessiva na relação contratual.

O taxativo reconhecimento judicial da nulidade de pactuação do preço em produtos também desconsidera a particularidade dos casos em que a relação contratual vigora há vários anos com pagamentos realizados por meio da entrega de parte dos frutos colhidos pelo arrendatário, circunstância que inegavelmente gera no arrendador a expectativa do cumprimento da obrigação nestes mesmos moldes.
Importa, então, apreciar o tema com os olhos voltados para a finalidade da norma especial, qual seja, a proteção da parte vulnerável do contrato, conforme prevê o art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947/66, sem descuidar da consideração dos princípios pertinentes, a exemplo da boa-fé objetiva, confiança e função social do contrato, exercendo, portanto, um raciocínio interpretativo teleológico e sistêmico das regras do microssistema agrário como forma de melhor resolução do problema.

O presente artigo defende a validade da cláusula contratual que fixa o preço em produtos nos contratos de arrendamento rural em determinadas hipóteses, a exemplo dos casos em que não se configure a vulnerabilidade socioeconômica do arrendatário ou a onerosidade excessiva na relação contratual, bem como, quando evidenciada a consumação da supressio e surrectio. Os elementos sistemático e teleológico de interpretação foram selecionados como mecanismos eficazes para solução da questão, analisando-se conjuntamente a ratio legis das disposições pertinentes de direito agrário e do Código Civil, evitando, assim, a mera reprodução de paradigmas dogmáticos.

O estudo é dividido basicamente em quatro partes.
Na primeira é realizada uma breve consideração acerca dos fundamentos históricos e sociológicos da regra agrária que veda a fixação do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural e sua aparente antinomia com princípios e preceitos do Código Civil. Em seguida, demonstra-se que a interpretação sistemática e teleológica é o método adequado para a solução do conflito normativo entre as disposições do direito agrário e do Direito Civil na regulação do contrato de arrendamento rural quando o critério da especialidade, por si só, for insuficiente para considerar todos os aspectos da relação contratual, a exemplo dos casos em que não se verifique a vulnerabilidade do arrendatário ou onerosidade excessiva do contrato, bem como, diante da supressio e surrectio. Na sequência, defende-se ainsubsistência da regra do art. 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66 nas hipóteses mencionadas,sem descuidar das implicações do tema com a função social do contrato e da propriedade. Por fim, a validade da fixação do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural é exposta como resultado da interpretação sistemática e teleológica do microssistema legislativo agrário.

01.Fundamentos da proibição do preço em produtos nos contratos de arrendamento rurale o aparente conflito com princípios e preceitos do Código Civil

O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) foi promulgado em um conturbado momento político brasileiro em que a luta pela reforma agrária gerava grande instabilidade social. A pressão por uma solução legislativa quanto à concentração de terras e à exploração dos trabalhadores rurais confinava de um lado os grupos de fazendeiros e de outro, os movimentos sindicais e ligas campesinas.

A redação final do estatuto atendeu às expectativas dos pequenos possuidores e trabalhadores rurais. A título de exemplo, a lei pôs fim à exploração feudal dos parceiros e arrendatários, abolindo a prestação de serviço gratuito, a exclusividade de venda da colheita e o pagamento em vales ou borós(art. 93, V), bem como, regulou o contrato de arrendamento rural com a previsão de vários princípios assecuratórios dos direitos dos arrendatários, tais como as formas de reajustes do preço, prazos mínimos da relação contratual, preferência da renovação do contrato e opção de compra da área, etc.

O Estatuto da Terra foi regulamentado pelo Decreto nº 59.566/66 que criou, no art. 18, parágrafo único, a figura jurídica da proibiçãodo ajuste do preço do arrendamento em quantidade de produtos cultivados: “É vedado ajustar, como preço de arrendamento, quantidade fixa de frutos ou produtos, ou seu equivalente em dinheiro”.

A opção pela vedação da fixação do preço do aluguel em produtos nos contratos de arrendamento rural teve fundamento na proteçãosocioeconômica do arrendatário, conforme a redação do art. 13, inciso V, da Lei 4.947/66. A legislação especial almejou prevenir eventuais prejuízos decorrentes das possíveis variações do preço dos produtos agrícolas, evitando a onerosidade excessiva no contrato de arrendamento, levando-se em conta a vulnerabilidade fática e social do trabalhador rural.

Para Giselda Hironaka, houve a tentativa de se buscar solução a um dos mais graves problemas da questão agrária, qual seja, a desigualdade de condições entre o proprietário e o trabalhador rural, manifestada pela exploração deste, considerado economicamente mais fraco. Assim, a principiologia do microssistema do Estatuto da Terra privilegiou o caráter social da relação proprietário-terra-trabalhador, no sentido da máxima proteção do arrendatário rural (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Contratos agrários. In Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, v. 14, n. 53, jul./set. 1990, p. 100). Deste modo, a disciplina do contrato de arrendamento rural foi permeada por normas de apelo social, regulamentando o exercício da atividade de exploração agrícola com vistas à observância da função social da propriedade e do progresso social e econômico das pessoas que nela trabalham e a tornam produtiva (COELHO, José Fernando Lutz. Contratos Agrários, uma visão neo-agrarista. Curitiba: Juruá, 2006, p. 175).

Como consequência, diante das peculiaridades das relações agrárias da época, encampou-se a ideia do presumido desequilíbrio entre arrendador e arrendatário no que se refere à capacidade de expressar as vontades nos contratos, razão pela qual a lei optou por estabelecer algumas vantagens ao produtor não proprietário (parte hipoteticamente mais frágil), limitando a autonomia privada e a obrigatoriedade das cláusulas contratuais nos arrendamentos rurais, considerando queo maior poderio financeiro se concentrava nas mãos de poucos latifundiários exploradores da massa trabalhadora rural.

A busca pela isonomia substancial nas relações contratuais envolvendo uma classe de economicamente débeis de um lado e um pequeno número de economicamente poderosos de outro, justificou a intervenção do Estado na direçãodesta modalidade contratual, evitando que os contratantes vulneráveis fossem explorados pelos mais fortes. Essa espécie de dirigismo contratual sob a forma legislativa reformulou os princípios tradicionais da doutrina contratual, tornando-os mais acordes com a socialização do direito.

Segundo Wellington Barros,
a ideia implantada pelo legislador residiu na admissão de que o proprietário rural impunha sua vontade ao homem que utilizasse suas terras de forma remunerada. […] A figura interventora do Estado era, assim, necessária para desigualar essa desigualdade, com uma legislação imperativa, porém de cunho mais protetivo àquele naturalmente desprotegido (BARROS, Wellington Pacheco. Curso de direito agrário. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2012, 7ª ed., p. 112).

Portanto, nos termos da norma especial – ainda em vigor – há nulidade absoluta da cláusula que fixa o preço do arrendamento rural em frutos ou produtos, inviabilizando a execução do instrumento contratual, que perde a eficácia de título executivo extrajudicial em caso de mora do arrendatário e obriga o credor arrendante recorrer às vias ordinárias para o recebimento de seu crédito. Este posicionamento está praticamente pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (A propósito: AgInt no Resp nº 1.397.715-MT – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T. – j. 12/09/2017; REsp nº 1.266.975-MG – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T. – j. 10/03/16 – DJe 28/03/16; REsp nº 231.177-RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª T. – j. 26/08/08 – DJe 15/09/08).

A situação fática que se apresenta é a seguinte: o arrendatário firma um contrato de exploração agrícola da área rural com o proprietário e assume a obrigação de honrar os pagamentos dos preços fixados em frutos parciais da produção; no vencimento das prestações queda-se inadimplente e, ao ser executado, invoca a nulidade da cláusula contratual que anteriormente havia anuído, com fundamento no art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, esquivando-se do processo executivo.

Fundamentando-se na natureza de ordem pública das disposições do Estatuto da Terra e seu regulamento, Pinto Ferreira defende que
os contratos agrários representam interesses coletivos ou gerais da sociedade, com normas prefixadas legalmente e acima da vontade das partes contratantes […] Por causa dessa determinação, nenhum acordo entre as partes pode vigorar caso venha a contrariar direta ou indiretamente tanto o espírito como a letra da lei, já que tal ofensa tornará nulo de pleno direito o contrato celebrado (FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 1995, p. 226). 

Valendo-se indiretamente do critério da especialidade, Wellington Barros entende que
os contratos agrários não podem ser interpretados da mesma forma que os contratos regidos pelo Código Civil […] nos contratos agrários, não existe esta plenitude de vontade. As partes são tuteladas pela lei do Estado, representadas pelo Estatuto da Terra e pelo Decreto nº 59.566/66. […] Por conseguinte, autonomia de vontade nos moldes preceituados no Código Civil existirá apenas na decisão ou não de contratar, pois se houve opção de contrato, a vontade se subsumirá nos ditames da lei. Os contratantes deverão cumprir a vontade do legislador (BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Direito Agrário. Op. cit., p. 117/118).    

Realmente, interpretando-se literal e internamente o microssistema agrário com a incidência de seus princípios específicos, o hermeneuta não encontra maiores dificuldades para fazer incidir as regras especiais sobre os casos perfeitamente a elas subsumidos.
Entretanto, diante de relações jurídicas despidas de certos fundamentos da legislação especial, como no caso em que o arrendatário não é a parte vulnerável da relação contratual, quando não haja onerosidade excessiva ou na hipótese de configuração da supressio e surectio, haverá aparente conflito entre a legislação agrária e determinados princípios e dispositivos do Código Civil.
A finalidade da proteção especial do arrendatário é justamente preservar a sua condição social e econômica diferenciada em relação ao arrendador, conforme expressamente prevê o art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947/66. Assim, não havendo situação fática que imponha a incidência da regra específica, o critério da especialidade da norma cai por terra e os dispositivos gerais do Código Civil surgem para regulamentar a hipótese, como, inclusive, autoriza a própria norma especial “os contratos agrários regulam-se pelos princípios gerais que regem os contratos de Direito comum, no que concerne ao acordo de vontade e ao objeto” (art. 13, caput, da Lei nº 4.947/66).

O art. 113, do Código Civil, por exemplo, dispõe que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fée os usos do lugar de sua celebração”. O § 1º do mesmo dispositivo (acrescentado pela Lei nº 13.874/19), determina que a interpretação do negócio jurídico expressar o sentido que for confirmado pelo “comportamento das partes posterior à celebração do negócio”, além de corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio e à boa-fé. Os arts. 421 e 422, por fim, elencam a função social do contrato e a boa-fé objetiva (adiante abordadas), como importantes baluartes para a interpretação e aplicação dos contratos.

Em determinadas relações jurídicas, portanto, é imprescindível a substituição do critério da especialidadepela interpretação teleológica e sistêmica das várias regras que aparentemente regulamentam, ao mesmo tempo, os contratos de arrendamento rural. Convém assim, analisar as referidas técnicas hermenêuticas para justificar a afirmação.

02. A interpretação sistemática e teleológica como técnica correta para a solução da antinomia entre as normas de direito agrário e de Direito Civil na regulação do contrato de arrendamento rural

Os métodos de interpretação se resumem na adoção de técnicas orientadas para a resolução de problemas de decidibilidade dos conflitos normativos, com vistas à obtenção de um resultado sólido e confiável. Segundo Bobbio, na teoria do método da interpretação, discutem-se principalmente os problemas da função do intérprete (juiz ou jurista) – se ela será passiva ou ativa, declarativa ou criativa – na pesquisa da solução justa e, consequentemente, quais os meios adequados para obtê-la, segundo os diversos pontos de vista (BOBBIO, Norberto. Mètodo. In Novissimo Digesto Italiano. Vol. X. Turim: UTET, 1964, p. 602).
Dentre os elementos de interpretação, o sistemáticodestaca-se quando são abordadas questões que envolvam a compatibilidade da norma com o conteúdo estrutural do sistema normativo, partindo-se da premissa de unidade do ordenamento. Na lição de Juarez Freitas, a interpretação sistemática é
o processo hermenêutico, por essência, do Direito, de tal maneira que se pode asseverar que ou se compreende o enunciado jurídico no plexo de suas relações com o conjunto dos demais enunciados, ou não se pode compreendê-lo adequadamente. Neste sentido é de se afirmar, com os devidos temperamentos, que a interpretação jurídica ou é sistemática ou não é interpretação (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito.São Paulo: Malheiros, 1995, p. 49).

Compilando as ideias de Karl Engisch, Buch, Gavazzi e Kelsen, Maria Helena Diniz pondera que
o sistema jurídico deverá, teoricamente, formar um todo coerente, devendo, por isso, excluir qualquer contradição lógica nas asserções, feitas pelo jurista, elaborador do sistema, sobre as normas, para assegurar sua homogeneidade e garantir a segurança na aplicação do direito. Para tanto, o jurista lançará mão de uma interpretação corretiva, guiado pela interpretação sistemática, que o auxiliará na pesquisa dos critérios para solucionar a antinomia a serem utilizados pelo aplicador do direito (DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 1998, 3ª ed., p. 13).

Ao discorrer sobre as possibilidades da interpretação sistemática, Canaris chama a atenção para o fato de que “podem-se evitar contradições de valores com recurso à interpretação sistemática na medida em que se interprete o teor de diferentes preceitos em conformidade com o sistema, isto é, de modo unitário” (CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Op. Cit. p. 209).
Com efeito, o Direito não pode ser encarado como um sistema fechado e completo, mas aberto e sujeito a constantes alterações e atualizações que geram, naturalmente, contradições. Em verdade, é salutar que seja assim, pois, um sistema normativo selado, imune à oxigenação por novas disposições e princípios, estaria sujeito à indiscutível falência na medida em que a ciência jurídica deve evoluir para acompanhar os diferentes contextos históricos da sociedade que regula.
A propósito, é célebre o ensinamento de Eros Grau, segundo o qual
a interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum (GRAU, Eros Roberto.Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2006, 4ª ed., p. 44).

Por isso, a busca pela coerência do sistema normativo via interpretação sistemática das regras jurídicas, em sintonia com novos princípios e paradigmas, é fundamental para a garantia da sua própria unidade, sem esquecer que os sentidos coerentes das normas são obtidos mediante a correta aplicação dos métodos interpretativos diante dos casos concretos, onde as contradições revelam-se.

O elemento de interpretação teleológico, por sua vez, busca na finalidade da norma o seu real sentido. Está contido na célebre redação do o art. 5º, da LINDB, segundo qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociaisa que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Sobre esse elemento interpretativo Carlos Maximiliano explica que a finalidadeinspiradora da criação do dispositivo deve servir para limitar seu conteúdo, deste modo, para compreender a norma é imprescindível investigar sua origem, já que toda prescrição legal tem um escopo e a regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele propósito. O Direito é
uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito.Rio de Janeiro: Forense, 2007, 19ª ed., p. 124).

Os elementos sistemático e teleológico estão intrinsicamente correlacionados ao método de interpretação histórico-evolutivo, que advoga a necessidade de o intérprete transportar o pensamento de outrora para o presente. O simples fato de investigar o momento histórico do nascedouro de determinada disposição legal e as subsequentes alterações do contexto social é suficiente para otimizar sua exata compreensão. Deste modo, o surgimento de novas leis, regulando novas relações jurídicas mediante a previsão de novos paradigmas e conceitos, demanda a interpretação conjugativa das normas passadas e pretéritas para a harmonização e oxigenação do ordenamento jurídico.
Ao lado dos métodos interpretativos, os critériostradicionais de solução dos conflitos normativos (lex superior derogat inferiori, lex specialis derogat generalise lex posterior derogat priori) buscam a opção pela norma que melhor agasalha o fato em apreciação. Ocorre que a clássica plataforma hermenêutica, quando utilizada de modo incipiente e sem o debruçamento sobre temas intrincados, não responde adequadamente aos conflitos normativos da atualidade.

É o caso da eleição do critério da especialidade puro e simples para a solução da aparente antinomia entre o art. 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66 e os artigos 113, 421 e 422, do Código Civil em determinados casos, como na hipótese em que não se observe a presença do principal elemento que justifica a incidência da norma especial, qual seja, a necessidade da máxima proteção sociale econômica do arrendatário (art. 13, inciso V, da Lei nº Lei nº 4.947/66).

Como já mencionado, a opção pela incidência da norma especial agrária em toda e qualquer relação contratual de arrendamento rural com fundamento no brocardo “lei especial derroga a lei geral”, além de resultar em equivocada aplicação do Direito nos casos em que não se haja vulnerabilidade socioeconômica do arrendatário ou onerosidade excessiva no contrato, bem como, quando consumada a supressio e surrectio, não resolve adequadamente o conflito normativo com as disposições e princípios do Código Civil

 

03. Insubsistência da regra do art. 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66 diante da ausência de vulnerabilidade socioeconômica do arrendatário ou onerosidade excessiva no contrato de arrendamento rural e quando evidenciada a supressio e surrectio: implicações com a função social do contrato e da propriedade

O fundamento da legislação agrária – proteção social e econômica do arrendatário (art. 13, inciso V, da Lei 4.947/66)–, umbilicalmente relacionado à noção de vulnerabilidade fática (socioeconômica) que justifica o tratamento desigual conferido pelo microssistema, pode não estar presente em toda relação jurídica de arrendamento rural.

Não são raros os casos em que a parte mais vulnerável no contrato de arrendamento é o próprio produtor arrendante, a exemplo da hipótese em que o proprietário da área possua menos recursos técnicos e econômicos do que uma grande companhia do agronegócio arrendatária da terra para cultivo.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça ao analisar a pretensão de uma empresa arrendatária consistente no exercício do direito de preferência na aquisição da propriedade do arrendante (conforme autorizado pelo art. 92, § 3º, da Lei 4.504/64), reconheceu que a norma protetiva agrária não se estende às grandes sociedades rurais arrendatárias (REsp nº 1.447.082/TO – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – 3ª T. – j. 10/05/16 – DJe 13/05/16).

O fundamento da decisão é impecável, pois, ausente a condição de vulnerabilidade do arrendatário – fundamento do microssistema legislativo agrário – não há que se falar em incidência das normas especiais. Da mesma forma, nos casos em que a pactuação do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural não seja suficiente para causar qualquer prejuízo financeiro ao arrendatário, não tem sentido a prevalência da regra de nulidade absoluta da cláusula contratual.

Partindo-se do pressuposto de que em determinada relação não esteja configurada a desigualdade substancial entre os contratantes – fundamento essencial das normas especiais agrárias – não há substrato normativo que ampare a regulação do contrato pelas normas protetivas, consequentemente, os princípios contratuais e obrigacionais genéricos entram em cena para moldar a interpretação do negócio jurídico.
Em outras palavras, esvaziado o fundamento jurídico da proteção do arrendatário – sua hipossuficiência (desigualdade material) em face do arrendante –, bem como, não configurada a excessiva onerosidade, nada mais resta senão uma relação contratual normal, e não especial, a merecer, portanto, regramento das disposições gerais e não especiais.

Expurgados os alicerces da norma especial, é manifesto o descompasso normativo entre o art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66 e os novosprincípios gerais dos contratos e obrigações do Código Civil, como a autonomia privada, os usos e costumes do lugar da celebração do contrato, o princípio da confiança, da boa-fé objetiva e função social do contrato, revelando-se ilógica, consequentemente, a declaração da nulidade da cláusula que estipula o preço em produtos nos contratos de arrendamento rural.
A autonomia privada, segundo Orlando Gomes, é um aspecto da liberdade de contratar, ou seja,
é o poder conferido às partes contratantes de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei imponha seus preceitos indeclinavelmente. Em matéria contratual, as disposições legais têm, de regra, caráter supletivo ou subsidiário, somente se aplicando em caso de silêncio ou carência das vontades particulares. Prevalece, desse modo, a vontade dos contratantes. Permite-se que regulem seus interesses por forma diversa e até oposta à prevista na lei. Não estão adstritas, em suma, a aceitar as disjposições peculiares a cada contrato, nem a obedecer às linhas de sua estrutura legal. São livres, em conclusão, de determinar o conteúdo de contrato, nos limites legais imperativos (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, 26ª ed.,p. 26).

Em suma, a autonomia privada é o poder reconhecido pela ordem jurídica aos particulares para dispor sobre seus interesses, realizando livremente negócios jurídicos e determinando os seus respectivos efeitos, impondo o respeito às vontades dos contratantes. Deste princípio decorre automaticamente a força vinculante do pactuado.

Os usos do lugar da celebração do contrato também integram os elementos de interpretação necessários ao descortinamento do negócio jurídico. Portanto, considerando os costumes dos locais de celebração dos contratos de arrendamento rural, em que invariavelmente o preço é estabelecido em produtos sem qualquer malícia ou má-fé, a cláusula contratual que assim dispõe não pode ser declarada nula quando ausente a necessidade da proteção social e econômica do arrendatário, pois, expressa a intenção límpida das partes em cumprir e adimplir o pacto ajustado (COELHO, José Fernando Lutz Coelho. Contratos Agrários. Op. cit. p. 127).

Nas regiões em que o agronegócio predomina, a moeda principal para o ajustamento do preço dos contratos é a matéria cultivada em razão da facilidade do produtor rural calcular os custos e benefícios da produção. Conforme Vilson Ferreto, na agricultura a colheita é previamente estimada, assim como o custo da produção, nela incluída a quantidade de frutos utilizada com a locação da terra. Demais disso, a previsão de variação nominal dos preços dos produtos é melhor controlada, pois, sujeita apenas às oscilações do mercado, diferentemente do custo do dinheiro, cujas flutuações, sempre a maior, são determinadas por fatores diversos que fogem ao controle do produtor […] não há sentido em obrigar as partes a contratar o preço de forma a contrariar os interesses do próprio explorador da terra, já que a moeda esta sujeita a variações crescentes e às vezes incontroláveis (FERRETTO, Vilson. Contratos agrários: aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 123/124).

Pela confiançacontratual, “as justas expectativas dos sujeitos dos negócios jurídicos merecem tutela jurídica, pois somente é possível a convivência social se as pessoas nela envolvidas possam realmente confiar que suas expectativas serão de fato garantidas” (THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., 2014, p. 53).

Em outras palavras, é inegável que no momento da celebração do contrato surge nas partes a legítima esperança de que seus deveres e direitos assumidos no pacto sejam devidamente prestados e recebidos, na forma, tempo e lugar ajustados, dentro da lealdade, boa-fé e com consideração ao outro contratante.

Não são raros também os casos em que arrendador e arrendatário mantêm relação contratual por vários anos mediante o pagamento dos alugueres em produtos colhidos nas respectivas safras, situação fática que faz nascer a confiança do proprietário da área em receber, no tempo aprazado e forma costumeira, o pagamento. Nesta hipótese, para o arrendatário consuma-se a supressio, ou seja, a perda da faculdade jurídica de exercer o direito legal de pactuar os pagamentos do arrendamento emdinheiro, enquanto que para o arrendador consuma-se a surrectio, consistente no surgimento da situação de vantagem (recebimento dos pagamentos em produtos) pelo não exercício do direito legal do arrendatário.
Conforme Dickstein, a supressioocorre “quando o titular de um direito deixa de exercê-lo, durante certo lapso de tempo, criando para a outra parte uma confiança razoável de que aquele direito não seria mais exercido” (DICKSTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: surrectio e supressio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 180).

A surrectio, por sua vez, é a consequência da supressiopara o polo adverso da relação jurídica. Segundo Martins-Costa “a surrectioaponta para o nascimento de um direito como efeito, no tempo, da confiança legitimamente despertada na contraparte por determinada ação ou comportamento” (MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 219).

É íntima a relação destes institutos com o princípio do venire contra factum proprium. Ainda de acordo com Martins-Costa, essa figura reflete a “vedação a exercitar um direito subjetivo, faculdade, ou posição jurídica em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o exercício posterior se choque com a boa-fé” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 614).

Deste modo, nos casos em que o arrendatário efetua, ano após ano, o pagamento do arrendamento rural em produtos, quedando-se em mora e sendo executado, não pode ele invocar em embargos a tese de nulidade da cláusula contratual que estipulou o pagamento do preço em produtos com fundamento no art. 18, parágrafo único do Decreto nº 59.566/66, em razão da proibição de comportamento contraditório que gera a consequente perda da sua faculdade legal de exercer determinado direito (supressio).

Esses institutos são corolários da boa-fé objetiva, aplicável a toda e qualquer relação contratual, “independentemente da existência de debilidade ou hipossuficiência por parte de um dos contratantes ou do desequilíbrio entre os pólos da relação” (GOMES, Orlando. Contratos. Op. cit., p. 46).

Conforme Theodoro Júnior
pelo princípio da boa-fé exige-se das partes do contrato uma conduta correta, sob a ótica mediana do meio social, encarada não com enfoque do subjetivismo ou psiquismo do agente, mas de forma objetiva. O que importa é verificar se o procedimento da parte, quando negociou as tratativas preliminares, quando estipulou as condições do contrato afinal concluído, quando deu execução ao ajuste e até depois de cumprida a prestação contratada, correspondeu aos padrões éticos do meio social (THEODOROJUNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Op. cit., p. 26)

É de se observar que todas essas noções acerca das relações contratuais estão inseridas no próprio conceito da função social do contrato. A propósito são precisas as lições de Junqueira de Azevedo no sentido de que este preceito propõe “integrar os contratos numa ordem social harmônica, visando impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado: direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento; função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. São Paulo: RT nº 750, abril de 1998, p. 116).

O autor correlaciona a função social do contrato ao texto constitucional que estabelece como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil ovalor social da livre iniciativa, portanto, ao operador do direito não se permite “ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade” (Idem).

Em suma, ao contrato é atribuída importante missão social que extravasa os próprios limites subjetivos da relação jurídica contratual, ou seja, o pacto deve ser concluído não apenas em benefício dos contratantes, mas muito além disso, dele não podem surgir conflitos com os interesses da sociedade em geral.

Consequentemente, nos casos em que se extrapolam os regulares objetivos das avenças – como na hipótese em que um dos contratantes invoca indevidamente a nulidade da cláusula que fixa o preço em produtos no contrato de arrendamento rural – cabe ao magistrado, antes de inclinar-se pela aplicação literal do disposto no art. 18, parágrafo único, do Decreto 59.566/66, verificar se o caso em concreto realmente revela todas as peculiaridades específicas que ensejam a proteção especial do arrendatário, bem como, considerar a importância dos efeitos do contrato (e da sua decisão) para toda a sociedade, protegendo, na maior medida possível, a função social do contrato.

Intimamente relacionado ao princípio da função social do contrato está o princípio da função social da propriedade. O Estatuto da Terra, inclusive, assegurou a todos a oportunidade de acesso à propriedade rural, desde que observada a função social (art. 2º). A lei também esclareceu as formas pelas quais a propriedade rural desempenha integralmente a sua função social: a) quando favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) quando mantiver níveis satisfatórios de produtividade; c) quando assegurar a conservação dos recursos naturais; d) quando observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem (art. 2º, § 1º).

O princípio da função social da propriedade, portanto, apregoa que o uso do imóvel deve sempre considerar o direito da coletividade e a justiça social, enaltecendo o interesse público sobre a utilização e exploração individual da área. Nos contratos de arrendamento rural tanto arrendador (proprietário) como arrendatário (explorador) devem conjuntamente respeitar este postulado mediante a regularidade da relação contratual, pois, a inadimplência do arrendamento em decorrência da má-fé do explorador que busa esquivar-se do processo executivo e despejo da área sob a proteção da regra do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, mesmo quando ausentes os pressupostos de incidência da legislação agrária, ocasionará invariavelmente o uso inadequado da propriedade e afetará a própria produtividade da área rural.

04. A validade da fixação do preço em produtos nos contratos de arrendamento rural como resultado da interpretação sistemática e teleológica do microssistema legislativo agrário

Como visto, a própria legislação agrária determina a regulação subsidiária dos contratos rurais pelos princípios gerais doscontratos de direito comum no que concerne ao acordo de vontadee aoobjeto(art. 13, caput, da Lei nº 4.947/66), em expressa manifestação à coerência da unidade do ordenamento jurídico, algo que remete, necessariamente, à interpretação sistemática desta fonte especial com as normas do Direito Civil.

Importante, contudo, observar que os princípios gerais das obrigações e dos contratos de direito comumdo Código Civil de 1916 eram resultado de um sistema fechado e imune a conceitos e valores metajurídicos. A partir da vigência do Código Civil de 2002 a principiologia contratual passou a ser orientada através das técnicas das cláusulas abertas, dentre as quais destacam-se a já mencionada boa-fé objetiva e função social dos contratos, tendo como alicerce as diretrizes da eticidade e socialidade. Ou seja, o direito civil é baseado, atualmente, em princípios modernos, criados para atender às mudanças de paradigmas dos contratos (FIUZA, César. Direito civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, 9ª ed., p. 402).

Essa modificação panorâmica do direito civil para um sistema manifestamente fluido deve ser considerada na interpretação sistêmica das normas de direito agrário. Miguel Reale, inclusive, sempre enalteceu a necessidade da interpretação da norma jurídica levando-se em conta os valores supervenientesincorporados ao ordenamento. Conforme o autor, “a norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser interpretada com abstração dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatos e valores supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere” (REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1980, 3ª ed., p. 62).

Por corolário, o resultado da interpretação literal do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, nos contratos de arrendamento rural em que o arrendatário não seja a parte vulnerável da relação jurídica, não haja onerosidade excessiva, ou ainda, esteja caracterizada a supressio, colide diretamente com o novosistemade direito privado quando confrontado com a cláusula geral da boa-fé, raizprincipiológica da qual brota o princípio da confiança, cujo conceito não ratifica o sentido da norma especial em toda e qualquer relação jurídica agrária.

Portanto, é incoerente com o atual ordenamento jurídico a regra especial agrária que reconhece a presunção irrestritada hipossuficiência do arrendatário na relação contratual com o arrendador de área rural e, com este fundamento, preconiza a nulidade absoluta da cláusula contratual que fixa o pagamento do aluguel de terras em produtos. Essa opção legislativa, outrora plenamente justificável, atualmente não mais se sustenta na medida em que confere posição excessivamente vantajosa ao arrendatário sem que estejam presentes as mesmas razões que impulsionaram o legislador a estabelecer o regramento há mais de cinquenta anos.

Segundo José Fernando Lutz Coelho
a interpretação rigorosa em declarar a nulidade da cláusula contratual do contrato de arrendamento que estabelece o preço em produtos, é extremamentevantajosa ao arrendatário inadimplente, que sob o manto ou pálio dessa legalidade exacerbada, não paga a renda ou aluguel do imóvel contratado, e alega a nulidade do preço, conduzindo a improcedência da ação despejatória, e ainda, exigindo uma postulação de arbitramento do preço, por meio de ação própria do arrendador (COELHO, José Fernando Lutz. Contratos agrários: uma visão neoagrarista.Op. Cit. p. 130).

Ou seja, trata-se de comportamento que frustra toda e qualquer expectativa legítima gerada do contrato. Ademais, a norma agrária, ao inquinar de nulidade as cláusulas que contrariassem seus preceitos, não preconizou o nulo pelo nulo, mas a possibilidade de prejuízo a quem ela buscou proteger (BARROS, Wellington Pacheco. Contrato de arrendamento rural: doutrina, jurisprudência e prática. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 103/104).

Afastados os alicerces da especialidadeda legislação rural, a rusga aparente entre o sistema privado do Código Civil e o microssistema agrário não deve passar pelos tradicionais critérios de resolução de conflitos normativos, mas pelo emprego da interpretação sistemática e teleológica das normas pertinentes como meio eficaz e adequado para a escolha da regra a ser empregada no caso em concreto, solucionando cirurgicamente a questão, ao contrário da simplória interpretação literal ou gramatical dos dispositivos.

Utilizando-se a interpretação coordenada das normas de direito agrário e civil apreciadas, é irrefutável a prevalência destas últimas sobre a regra nua e crua do art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, impondo-se o reconhecimento da validade da cláusula que fixa o preço em produtos nos contratos de arrendamento rural quando não evidenciadas, no caso em concreto, a condição de vulnerabilidade fática ou excessiva desvantagem contratual ao arrendatário, além da hipótese de configuração da supressio.

É preciso que os tribunais rediscutam o tema com esse novo olhar, evitando a repetição de paradigmas pretéritos sem maior debruçamento acerca da questão. A propósito, um dos primeiros precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria foi julgado há mais de vinte anos. Trata-se do REsp nº 128.542/SP, de 14 de outubro de 1997, assim ementado: “Arrendamento rural. Preço. Produtos. É inválida a cláusula que fixa o preço do arrendamento rural em produto ou seu equivalente, e não em quantia fixa de dinheiro (art. 18 e seu parágrafo único, do Dec. 59.566/66). Recurso conhecido e provido.”

O acórdão, por sua vez, está fundamentado em precedente do Supremo Tribunal Federal julgado no longínquo ano de 1986, com a seguinte ementa: “Contrato de arrendamento rural. Infringe o art. 18, e seu parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66, a cláusula onde se estabelece a obrigação de pagar aluguel estabelecido por equivalência ao valor de sacos de açúcar” (RE nº 107.808-MG – 1ª T. – Rel. Min. Octávio Gallotti – DJ 29/08/1986).

A quase totalidade dos subsequentes julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça segue o mesmo raciocínio paradigmático preestabelecido, reproduzindo a literal disposição do Decreto nº 59.566/66 sem maiores esforços hermenêuticos, desconsiderando o fato de que, no labor interpretativo do direito o intérprete deve alinhar o sentido da norma com a realidade social contemporânea, encontrando, através do manejo flexível dos métodos, a solução jurídica compatível à nova sociedade (MAGALHÃES. Maria da Conceição Ferreira. A hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 137).

Além do indevido desprezo aos elementos históricos, culturais e sociais vivenciados à época da edição do Estatuto da Terra, a maioria dos julgados ignora o fato de que a imperatividade da legislação agrária foi estabelecida com a finalidadeprecípua de proteger o mais frágil na relação contratual, presumidamente, o arrendatário, cuja premissa atualmente não mais se observa com a mesma intensidade de cinquenta anos atrás.

O resultado da interpretação sistemática entre as fontes do direito agrário e civil (somada ao elemento teleológico) espelha a solução mais justa e adequada à resolução dos contratos de arrendamento rural em que há previsão de ajuste do preço em produtos nas hipóteses de ausência da hipossuificiência do arrendatário ou onerosidade excessiva contratual, além dos casos em que esteja configurada a supressio e surrectio, evitando o enriquecimento ilícito de uma das partes, a má-fé contratual e o comportamento contraditório do arrendatário inadimplente que se vê no polo passivo de uma ação executiva.

Em recente julgado, finalmente, o Superior Tribunal de Justiça dá mostras de que pode tomar novo rumo quanto ao tema.

No julgamento do REsp nº 1692763/MT a Ministra Nancy Andrighi abriu divergência para manter a executividade do contrato de arrendamento rural que fixou o pagamento em produtos, com fundamento no princípio venire contra factum proprium. O Ministro Relator Moura Ribeiro, que mantinha o entendimento já pacificado na Corte pela nulidade da cláusula contratual, restou vencido na ocasião.
É o teor da ementa:

“RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. CLÁUSULA QUE FIXA O PREÇO EM PRODUTOS. CONTRARIEDADE AO DISPOSTO NO DEC. 59.566/66. CIRCUNSTÂNCIAS ESPECÍFICAS DA HIPÓTESE. BOA-FÉ OBJETIVA. PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. NEMO AUDITUR PROPRIAM TURPITUDINEM ALLEGANS. (…) 4. O Dec. 59.566/66, em seu art. 18, parágrafo único, veda que os contratantes ajustem o preço do arrendamento rural em quantidade fixa de frutos ou produtos (ou de seu equivalente em dinheiro). 5. Esta Corte Superior tem entendido que a invocação de vício no negócio jurídico por quem a ele deu causa revela conduta contraditória, apta a obstar o decreto judicial da invalidade alegada, na medida em que representa afronta à boa-fé objetiva, princípio consagrado no art. 422 do CC/02. Precedentes. 6. No particular, o que se verifica é que, além de não ter sido apontado qualquer vício de consentimento na contratação, a avença foi firmada há mais de 16 anos, não havendo notícia de que, antes da oposição dos presentes embargos, (aproximadamente quatro anos após o advento do termo final pactuado), o recorrente tenha apresentado qualquer insurgência quanto à cláusula que ora se discute. 7. Entender pela inviabilidade do prosseguimento desta execução equivaleria a premiar o comportamento contraditório do recorrente, que, durante mais de metade do período de vigência do contrato, adimpliu sua obrigação nos moldes como acordado (entrega de produto), tendo invocado a nulidade da cláusula tão somente quando em curso o processo executivo que objetivava a satisfação das parcelas não pagas, em clara ofensa à legítima confiança depositada no negócio jurídico pela recorrida. 8. A proibição de comportamentos contraditórios constitui legítima expressão do interesse público, que se consubstancia tanto na tutela da confiança quanto na intolerância à pratica de condutas maliciosas, torpes ou ardis. 9. O fato de o contrato que aparelha a presente execução ter previsto a remuneração do arrendamento em quantidade fixa de sacas de soja não lhe retira, por si só, os atributos que o caracterizam como título executivo – certeza, exigibilidade e liquidez (arts. 580 e 618, I, do CPC/73). No particular, o Tribunal de origem, soberano no exame do acervo fático-probatório, foi categórico ao afirmar que o efetivo valor da dívida em cobrança pode ser obtido mediante simples operação matemática. 10. O reexame de fatos e provas é vedado em recurso especial.” (REsp 1692763/MT, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/12/2018, DJe 19/12/2018).

Conclusão
De tudo o que se expôs, conclui-se que não é objeto da proteção especial por parte do microssistema legislativo agrário o grande produtor rural arrendatário de terras, tampouco a relação contratual despida de grande onerosidade em desfavor do explorador da área rural. Ademais, o comportamento do arrendatário que não insurge contra a cláusula contratual que fixa o pagamento do preço em produtos e efetua por vários anos os pagamentos nestes moldes, inviabiliza o reconhecimento da nulidade do contrato com fundamento no art. 18, parágrafo único, do Decreto nº 59.566/66.

Estas circunstâncias afastam a vulnerabilidade da parte presumidamente hipossuficiente em relação ao arrendador rural proprietário, esvaziando o principal pressuposto da incidência das regras especiais agrárias. Por corolário, o critério da especialidade deve dar lugar à interpretação sistêmica e finalística do microssistema de legislação agrária, com a regulação da relação contratual pelos dispositivos do Código Civil e princípios gerais que regem os contratos de Direito comum.

Importa, nestes casos específicos – indevidamente solucionados pela rasa aplicação do critério da especialidade das normas –, providenciar a comunicação entre as fontes normativas do direito agrário e do direito civil, considerando toda a principiologia contratual contemporânea. Este exercício hermenêutico resultará na evidência das regras e princípios adequados para a resolução do impasse nos casos judicializados.

 

Saul Duarte Tibaldi
Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) (2013-2021). Professor adjunto de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Graduação e Pós-Graduação na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Valter Fabricio Simioni Silva
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Cuiabá (UNIC). Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio). Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Juiz de Direito no Estado de Mato Grosso.

*Artigo completo publicado na Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil  Belo Horizonte, v. 24, p.59-82, abr/jun.2020

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