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O contador de Auschwitz

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A realização na Alemanha do julgamento de OskarGröning, ex-membro da SS nazista que trabalhou no campo de concentração de Auschwitz entre 1942 e 1944, inspira algumas reflexões. O aparentemente inofensivo ancião de 93 anos declarou-se 'moralmente culpado' e pediu desculpas às vítimas, mas sua defesa argumentou que ele não praticou crimes, pois exercia apenas tarefas burocráticas de controle administrativo, o que motivou seu cognome de 'contador'.

A primeira pergunta é: vale a pena realizar um julgamento setenta anos após o encerramento da 2ª Guerra Mundial? Tanto tempo depois, há esperança de justiça?

Minha resposta é positiva. A humanidade tem direito a conhecer a verdade acerca de um dos episódios mais monstruosos de sua história. O julgamento, ainda que decida pela prescrição dos crimes, impede o esquecimento. A anistia e o perdão, se existirem, não serão legítimos apagando-se o passado, mas expondo com crueza, em detalhes, a dimensão do horror ditatorial. Conhecer a história não é garantia de não se repetirem os erros do passado, como, aliás, parece indicar a ascensão de partidos de extrema-direita e racistas na Europa, mas ignorá-la é passaporte carimbado para o desastre civilizatório.

Outro questionamento: pode um simples contador ser responsabilizado pelos horrores do nazismo? Ou, dito de outra forma: é possível ser inocente em Auschwitz?

Nesse caso, afirmo que não. O tesoureiro da organização criminosa, o instrutor de tiro dos narcotraficantes, o corretor financeiro dos megacorruptos, o tradutor dos terroristas, todos são corresponsáveis pelos crimes daqueles para quem conscientemente trabalham. Assim como o contador de Auschwitz, seus serviços técnico-burocráticos não são moralmente neutros, mas elementos necessários numa engrenagem do mal. Não há inocência na colaboração com o crime, nem sequer na omissão ante sua prática.

Dir-se-á que em certos casos extremos não há alternativa a não ser obedecer a ordens. 'Só estava cumprindo ordens' é uma desculpa recorrente. Mentira! Sempre há alternativa.

Enquanto o jovem contador Oskar aderia à SS, outro jovem alemão, o estudante socialdemocrata Willy Brandt, exilou-se na Noruega e renunciou à cidadania alemã. Quando os nazistas ocuparam a Noruega, fugiu para a Suécia e combateu na resistência à ditadura que controlava seu país natal e metade da Europa. Após a guerra, recuperou sua cidadania e foi eleito prefeito de Berlim, Primeiro-Ministro da Alemanha e Prêmio Nobel da Paz.

Como a imensa maioria de seus contemporâneos e de tantos covardes e carreiristas de todas as épocas e latitudes, OskarGröningpreferiu o caminho mais fácil, o de aderir ao poder nazista e servi-lo cegamente, inclusive na máquina de extermínio de Auschwitz que vitimou mais de um milhão de pessoas. Não é inocente.

Se não usou as mãos para matar, utilizou-as para assegurar que não faltasse combustível nas câmaras de gás ou munição para os algozes. Em Auschwitz, o contador é culpado, assim como o encanador e a telefonista. Ninguém tem mãos limpas trabalhando para o mal.

Sempre há alternativa, quando o indivíduo tem convicções, princípios e coragem. Como disse Nelson Mandela, amigo de Brandt e também Prêmio Nobel da Paz, no célebre julgamento de Rivonia: 'quando se tem um ideal pelo qual valha a pena viver e pelo qual se esteja preparado para morrer'.

Sempre há alternativa, como demonstram os exemplos de Aristides de Souza Mendes e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa que, atuando respectivamente no consulado português em Bordeaux e no consulado brasileiro em Hamburgo e desafiando frontalmente as instruções dos seus governos, concederam vistos a milhares de judeus permitindo-lhes a fuga do nazismo e salvando-lhes as vidas. Perseguido por Salazar, Aristides morreu na miséria.

Sempre há alternativa, mas optar por ela muitas vezes é sofrido e perigoso. É a 'porta estreita' de que nos fala o Evangelho de Mateus. Ela é difícil de ser localizada e mais ainda de ser transposta, mas é a única que nos conduz à paz de espírito.

 

Luiz Henrique Lima – auditor substituto de conselheiro do TCE-MT – Graduado em Ciências Econômicas, Especialização em Finanças Corporativas, Mestrado e Doutorado em Planejamento Ambiental, Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia.

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