sexta-feira, 26/julho/2024
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Niuan e Nilce

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Eu não gostaria de ver passar para o esquecimento sem mais comentários a forte emoção despertada nesta cidade pelo falecimento de duas pessoas. Antes desculpe-me o leitor, não são apenas falecimentos, mas centenas de outros fatos de inegável importância para a sociologia de Sinop, têm passado em branco por falta de manifestação, de pessoas e organismos dedicados a cultuar, homenagear, registrar momentos históricos de nossa terra.

“História” não é apenas “estória”, é o registro de fatos indispensáveis para a construção da personalidade coletiva, já que tratamos de cidade tão jovem.

Vejamos, mesmo que sob emoção, Niuan e Nilce, pessoas de “eras” bem diferentes, sepultadas no mesmo dia.

O jovem causou profunda ansiedade e comoção por ter ido embora de súbito sem deixar pista, ter sido encontrado morto, solitário, vários dias depois. A divulgação de seu desaparecimento pelas mídias convencionais e pelas modernas formas eletrônicas polarizou a cidade.

Era um jovem como todos os outros milhares que alegram nossa cidade e enfeitam nossas dezenas e dezenas de faculdades. Trágico desaparecimento. Seu passamento parece emoldurar-se sob a aparência de conflitos pessoais de ordem existencial, coisas que hoje em dia costumam deixar as famílias incapazes de exercer o tradicional poder do clã para influenciar os destinos dos seus membros. Vemos, portanto, que Sinop, nosso querido e ousado povoadinho plantado um dia à beira da BR é hoje uma cidade cosmopolita, frágil e à mercê das mesmas tragédias e tsunamis da globalização. Nossos filhos não são mais garotos provincianos. Isso é bom mas também é perigoso.

Estou falando de nosso tempo, que os sociólogos têm chamado de pós-modernidade. Tempo este em que a ingerência externa da comunicação sistêmica subliminar e asfixiante sobre as pessoas, sobre as famílias, sobre a empresa, a comunidade e todas as organizações sociais, é pernóstica, vem para confundir, não para libertar. Andamos intoxicados, ébrios de informação tendenciosa, de legislações oportunistas e de jurisprudências cínicas: tudo o que é errado, degenerado, criminoso e anormal, é tratado com charme especial, alvo de ciosas atenções do governo. Tudo está perturbado por um tipo de marketing que se infiltra imperceptivelmente nas consciências, é sistêmico, denso, e não visa ao fraternal bem estar humano. Vivemos na era da comunicação sem futuro certo, era da qual Marshall Mac Luhan nos preveniu em sua famosa obra “Guerra e Paz na Aldeia Global” (War and Peace in the Global Village (1968). As repercussões sociais dessa selvageria nada têm a ver com as finalidades humanas. Têm a ver sim com planos de dominação mundial, com os  chamados jogos do poder. Os exemplos da sociedade nas figuras dos cidadãos mais bem sucedidos,  os pastores religiosos, os mais velhos, os mestres, os trabalhadores, tudo foi substituído pelo paradigma de marginais famosos e artistas drogados, novelas depravantes, etc. A brutalidade social de nossos dias é resultado de premeditada deterioração das tradições. Niuan provavelmente sabia disso, era um profissional da comunicação. Sua morte pode ser considerada um fenômeno de nosso tempo, tempo em que o prosaico fenômeno dos conflitos de gerações dos anos 60 e 70  foi substituído pela sórdida estratégia marxista de minar as bases sociológicas tradicionais.

Drª Nilce Galvan foi a primeira médica de Sinop. Falecida aos 64 anos, mais de metade de sua vida foi totalmente dedicada à comunidade sinopense e ao Hospital Dois Pinheiros. Quanta e quanta gente chegou a este mundo ao cair em suas mãos, quanta e quanta gente também não se foi embora deste mundo antes da hora, também pelas suas suaves mãos. Médica dos tempos em que, numa época de chuvarada como a destes dias, o paciente chegava ao hospital nos braços de alguém, lavado de chuva porque o carro não conseguia chegar até o Hospital. Lembro de uma noite em que eu e ela à porta do Hospital esperávamos passar uma chuva dessas que “Deus mandava”… A futura Avenida dos Tarumãs era um breu, sem luz. Nove horas da noite, surgiu longe uma lanterninha ziguezagueando, aparecendo e desaparecendo. Eu disse, “olha, tem gente caçando rã”, ao que ela respondeu, “que nada, caçador de rã espera a chuva passar, aquilo é gente vindo consultar!”. Ela estava certa.

Se me pedissem para fazer uma rápida associação de idéias sobre ela em uma ou duas palavras eu diria “trabalho”, “simplicidade”. As pessoas que foram visitar seu féretro eram em grande maioria seus amigos e clientes desde os anos 80. Gente madura de belos cabelos encanecidos, velhos conhecidos meus também, o que me fez lembrar que já posso furar certas filas, estacionar meu carro em lugares especiais. Chega uma hora em que percebemos que tudo o que fazemos vai se transformar em lembrança mais tarde. Os filósofos chamam isso de maturidade, eis a vantagem das lembranças…

Certa vez quedamo-nos a discutir, eu e ela, sobre uma criança com uma grave deficiência neurológica. Ela achava que era problema de parto, embora difícil afirmar. Dado momento ela me veio com Shakespeare: disse-me que os primeiros registros da história da medicina atribuindo déficit motor ao parto complicado são encontrados na tragédia Ricardo III, de 1597.

Um grande cidadão como Shakespeare, capaz de estupenda e transcendental argúcia observacional, mesmo sem conhecimento científico, foi capaz de ajudar os médicos. Assim também os grandes médicos são capazes de extrapolar o restrito âmbito da medicina para serem grandes cidadãos, como Drª. Nilce.

Emerson Ribeiro, médico em Sinop.

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