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E se esquecêssemos tudo? Uma reflexão sobre os saberes que nos fazem humanos

Fernando Wosgrau é administrador, mestre em Agronegócios, professor e palestrante em Mato Grosso
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Tudo começa com o silêncio. Mas não um silêncio qualquer — um silêncio tão profundo que apaga até as palavras. Não houve guerra. Não houve explosão. Apenas uma noite caiu sobre o mundo, e com ela, a humanidade esqueceu de si.

Ao amanhecer, ninguém sabia mais o nome do sol. Ninguém lembrava como acender uma lâmpada ou o que era um livro. As palavras estavam lá, soltas, mas desconectadas. A linguagem havia se partido — e com ela, a civilização.

Do caos, dois caminhos emergem: os que tentam entender e reconstruir, e os que seguem o instinto, criando uma cultura baseada na sensação. Com o tempo, essas duas forças entram em tensão: os Interpretes Antiquitatis, que buscam reviver o passado, e os Liberi Geniti, que rejeitam a herança antiga e inventam uma nova forma de ser.

Os Interpretes viviam do passado, mas esqueciam o presente. Os Liberi criavam sem raízes e, às vezes, reinventavam o erro com nova linguagem. Ambos, à sua maneira, buscavam sentido — um nas cinzas da memória, o outro no sopro da reinvenção.

Essa história é fictícia, mas a reflexão é real: que formas de conhecimento sustentam a humanidade? O conhecimento empírico é o saber da experiência direta. John Locke dizia que a mente é uma tabula rasa preenchida pela vivência. Esse saber ressurge rápido. Os sobreviventes fazem fogo, pescam, reconhecem perigos, mesmo sem entender por quê. O empírico mora no corpo.

O conhecimento científico, baseado em observação, experimentação e validação, é uma conquista da modernidade. Descartes, com seu método da dúvida, e Bacon, com a indução empírica, ajudaram a construí-lo.

No mundo do esquecimento, a ciência sobrevive como vestígio. Alguns tentam recriar padrões a partir de fragmentos. A ciência ressurge como instinto racional, frágil sem linguagem, mas essencial para compreender o mundo.

A filosofia não se perdeu. Apenas mudou de forma. Mesmo sem palavras, as pessoas olham o céu e perguntam, com o corpo: “Por quê?” Sócrates dizia que o verdadeiro saber nasce da ignorância reconhecida. Platão, em sua Alegoria da Caverna, nos fala do despertar. A filosofia, nesse novo mundo, não traz respostas — mas orienta o olhar diante do desconhecido.

A teologia nasce da fé, da necessidade de sentido. Para Agostinho, Deus habita a memória. Para Tomás de Aquino, fé e razão coexistem. Sem religiões formais, os sobreviventes criam novos deuses: as estrelas, as árvores, o silêncio. O sagrado retorna como tentativa de nomear o invisível.

O conhecimento tácito é o que não se diz — se sente. Michael Polanyi escreveu: “sabemos mais do que podemos dizer”. É o saber das mãos, dos gestos, do cuidado. É esse conhecimento que faz uma mãe acalmar um filho ou um grupo dançar ao redor do fogo sem motivo racional. O tácito é o elo invisível entre humanos — e resiste mesmo quando tudo mais se esquece.

O que aprendemos com isso? Talvez o mais assustador não seja esquecer tudo — mas desprezar o que mais nos sustenta. Cercados de tecnologia, esquecemos o valor dos gestos simples: cuidar, proteger, sobreviver. Conhecimentos empíricos e tácitos, invisíveis no cotidiano, são os primeiros a nos salvar quando tudo desaba.

A ciência, mesmo imperfeita, insiste em buscar a verdade. A religião dá nome ao que não compreendemos — e acalenta. A filosofia não oferece respostas prontas, mas nos ensina a perguntar melhor e a escolher com mais humanidade.

Essa história fictícia nos lembra: saber não é decorar o mundo. É lembrar de ser humano. “Em tempos de velocidade, distração e excesso, talvez o maior gesto de sabedoria seja esse: sentir, lembrar, pensar — e, acima de tudo, refletir. Antes que o silêncio volte.”

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