Ao longo de nossas vidas escutamos muitas pessoas falarem que não se arrependem de nada do que fizeram e que, se voltassem no tempo, fariam tudo de novo. As vezes me pego surpreendido pelas minhas lembranças da infância e, por um momento de descuido, viajo em um mundo de faz de conta, criando um monólogo de aventuras lançadas ao tempo feito semeadura, ao longo desse virtuoso caminho. Lembro-me, com muita clareza, da chácara onde cresci, sempre na companhia dos meus avós. Meu vô João, carinhosamente conhecido por sinjão, além de carregar nas costas a árdua tarefa de garantir o pão para sua prole, ainda trazia um violão, de onde fazia ressoar os mais bem emoldurados acordes, que contagiava as mais ilustres visitas, convidados de gala dos encontros de fim de semana.
A Romária…, ah… a minha vó Roma, que mulher sublime. Enérgica e carinhosa, não só cuidava, mas também disciplinava, educava, e ajudava a quem dela precisasse. E, a netaiada levada, que aprontava. Desde as subidas nos morros, até as armações de arapucas para a pegada de passarinhos. O tempo passava mais devagar. Dava para ficar uma tarde inteira contemplando o espelho da "pandorga" frente ao sol. Quem aí não se lembra da "funda". Os melhores de situação, compravam "soro", aquele caninho de borracha usado para amarrar o braço quando se ia tomar injeção. Os mais simplórios, usavam tiras de câmara de pneu, e, ambos, usavam a "forquilha" de goiabeira em forma de "Y", como base propulsora das estilingadas. Naquela época os nossos alvos eram outros. E, além da funda ou estilingue, havia ainda o carrinho de "rolemã". Primeiro era uma jornada em oficinas na busca da rodinha, um rolamento de mesmo nome, depois da tábua, caibro, pregos e tantos outros ingredientes até se notar que o prospecto imaginário de carro de corrida idealizado originariamente, em nada correspondia com o invento. Mesmo assim, aos trancos e barrancos, a fantasia de criança nos fazia assentar sobre o mais possante veículo já construído. E as árvores e os galhos do caminho nos transformavam nos maiores malabaristas…
O mundo parecia ser um pouco mais equilibrado. E quem de vocês já não jogou bolita. Naquela época tínhamos a linha, riscada na terra, que indicava inicialmente quem seria o primeiro a jogar, e a seleção se fazia através do grau de proximidade das esferas quando do arremesso, de uma razoável distância. Ainda havia os buques e círculos. Era um sonho ter um chumbo (bolita de aço), tudo para acertar e ganhar as bolitas dos outros. Sinto saudades dessa época. Muitos podem até achar com isso, que sou muito mais velho do que pareço, ou até saudosista demais. Os princípios eram distintos, os valores não eram os mesmos, e as preocupações eram outras. Tínhamos muito menos suicídios, apenas doenças do corpo e não da alma. O dinheiro era um meio, que agora se tornou o fim, e muitos ainda, escandalosamente, propagam a ideia absurda de que uns justificam os outros. Os bêbados não eram doentes, contudo, eram contados nos dedos. Hoje, canto Lulu… pois "não tenho dedos para contar". Beber era figura reprovável, hoje é memorável. Lá atrás, pó era para quem tinha café…hoje pó é para quem tem pouca fé. É, as coisas mudaram… E para o mundo cibernético que avança em marcha galáctica… Fica a minha garrafinha jogada ao mar com um papiro e a mensagem de que aqui um dia viveu alguém muito feliz, brincando de pés no chão, no barro, rodeado de bichos, amor, amizades, respeito e sob a proteção de nosso Deus.
Fabio Arthur da Rocha Capilé – advogado, presidente do Instituto dos Advogados Mato-grossenses, Conselheiro da OAB-MT e professor universitário.