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Críticas políticas versus crimes contra a honra e a segurança nacional

Mauro Viveiros - procurador de Justiça aposentado, mestre em Direito pela Unesp, doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madrid e Advogado
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O acirrado conflito entre membros do Poder Executivo e do Judiciário no Brasil, que nas últimas semanas motivou acusações públicas e representações criminais, enseja a análise do fenômeno da luta política à luz do Direito Penal.

Em meio às hostilidades entre partidários do governo e da oposição- que utilizam as redes sociais como arena de combate e a desinformação como arma, espalhando notícias falsas e desqualificando adversários – algumas autoridades alojadas no cume da hierarquia dos poderes têm feito graves acusações à postura de outros agentes públicos, num confronto poucas vezes visto, num momento em que a pandemia do coronavírus ceifou a vida de quase noventa mil pessoas no país em menos de cinco meses.

O recurso ao Judiciário por interessados em criminalizar críticas políticas, pessoais ou corporativas, acompanhado de intensa exploração midiática, cria alta expectativa social por punições que, muitas vezes, são impossíveis ante os limites do Direito Penal.

O objetivo desse breve artigo é chamar a atenção para a necessidade de uma análise objetiva e célere, por parte das autoridades competentes, de condutas aparentemente criminosas que, em verdade, não passam no teste de tipicidade objetiva e, portanto, não constituem matéria penal.

Antes, porém, uma ressalva é necessária: saber se um fato é de interesse jornalístico ou uma crítica, fundada ou não, um discurso ilícito ou criminoso é um julgamento que exige consideração de aspectos sobre o “texto”, o contexto e circunstâncias variáveis, podendo suscitar interpretações divergentes mesmo entre especialistas do direito.

A fronteira entre o lícito e o ilícito quase sempre é composta de faixas cinzentas. Exteriorizar concepções acerca da ciência, da moral, da religião, da política etc., é o exercício da liberdade de expressão, garantida pelo artigo 5º, IV e IX da Constituição Federal. Os diferentes modos, motivos e a intensidade dessa exteriorização constituem o material a ser examinado.

O elemento intencional é a coluna vertebral nos crimes contra a honra. Se é mais fácil distinguir um crime de injúria, calúnia ou difamação, de uma crítica acerba e até mesmo injusta, isso nem sempre pode ser deslindado com a mera leitura de um texto. Sem embargo, nem tudo exige grandes esforços de interpretação; o sistema jurídico opera com critérios minimamente objetivos a serem aplicados racionalmente, em homenagem à imparcialidade técnica, à igualdade e à segurança jurídica.

Assim, a análise de um comportamento supostamente criminoso obedece a procedimento intelectual em que se indaga se a conduta corresponde, efetivamente, à previsão do tipo penal. Isto é, se encontra adequação ao tipo objetivo (conjunto de caracteres objetivos ou materiais do tipo legal de delito), composto de um núcleo (verbo=ação ou omissão) e de elementos secundários ou complementares (ex. sujeitos – ativo e passivo; objeto da ação; bem jurídico; nexo causal; resultado; circunstâncias de tempo, lugar, meio, modo de execução). É o núcleo real-material de todo delito.

Nos crimes dolosos exige-se, ademais, averiguar se o agente manifestou, com consciência, vontade de realizar a conduta que a lei considera típica, isto é, se ele sabia e queria realizar o tipo objetivo, que admite tanto o dolo direto quanto o eventual (querer ou assumir o risco de produzir o resultado).

No Estado de Direito Democrático, em que as leis penais emanam de um parlamento eleito, conferindo aos cidadãos a garantia de que só serão processados e/ou condenados nas hipóteses por ela taxativamente demarcadas, a única postura metodológica aceitável é a de, “trabalhando-se com o texto da lei nas mãos”, com imparcialidade técnica – o verbo típico é o que qualifica a ação criminosa –desentranhar o aparentemente ilícito da matéria penal.

Uma vez definidos os fatos como incontroversos, o comportamento deve ser examinado de modo objetivo, cujo juízo pode, em boa parte dos casos, descartar a tipicidade penal sem necessidade de investigação profunda. Alguns exemplos de notícias recentes podem ilustrar o que se fala.

Fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa ou de guerra são condutas tipificadas na lei de segurança nacional. Também é crime de responsabilidade previsto no art. 6º, nº 5 e 6, c/c art. 13, nº 1 da Lei nº 1.079/50.

Mas a nota publicada pelo Gen. Heleno em 22.05.2020, na sua conta pessoal no Twitter, dizendo que o pedido de apreensão do celular do Presidente da República é inconcebível e, até certo ponto, inacreditável e que, caso se efetivasse, seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional do País, não configura nenhum desses delitos.

A atitude do Ministro – que está sob investigação preliminar da PGR – é inusitada por se insurgir contra possível determinação de um Ministro do STF no exercício da jurisdição, mas não há tipicidade penal na conduta, posto que os referidos tipos penais exigem propaganda deprocessos violentos ou oposição por meios violentos, inexistentes no caso.

Sequer poderia haver desobediência, já que se tratava de mera cogitação acerca da possível ordem que seria afrontosa à autoridade do Presidente da República, segundo o General; coisa discutível, visto que no caso o telefone seria possível instrumento de crime.

E embora a manifestação do General Heleno fosse imprópria, sua revolta é compreensível em razão do episódio antecedente em que o mesmo Min. Celso de Mello, nos autos do Inquérito que apura se o Presidente interferiu indevidamente na Polícia Federal, determinara a intimação de ministros militares, entre eles o próprio Heleno, e vários deputados federais, a prestarem depoimento à PGR, antecipando que, em caso de não cumprirem o prazo fixado para agendar o depoimento, poderiam ser conduzidos debaixo de vara.

A advertência – ameaça – era desnecessária, pois nada indicava que os destinatários pudessem se negar a prestar depoimento. Foi, portanto, inusitada e errônea, porque o Judiciário decide sobre fatos, não sobre hipóteses.

Dizer que se torce para que o Presidente Bolsonaro, acometido com o Covid-19, morra, como disse o jornalista Hélio Schwartsman (Folha de São Paulo), é uma afirmação chocante, mas está longe de ser crime contra a honra do Presidente da República, como postulou a Advocacia Geral da União na representação feita ao Procurador Geral da República.

Independente da motivação, a tese do articulista é a de que, morto Bolsonaro, muitas outras vidas seriam poupadas; e, embora torcer pela morte de uma pessoa humana seja reprovável do ponto de vista moral, nessa opiniãonão há imputação de qualquer fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação do Presidente, como exige o art. 26 da Lei de Segurança Nacional.

Desejar, esperar ou torcer passivamente para quem alguém morra, não constitui ameaça ou incitação ao crime. Cuidava-se de retorica para chamar a atenção sobre a postura do Presidente em relação à pandemia do coronavírus, que o jornalista considera nefasta.

O Ministro Gilmar Mendes, do STF, disse em transmissão na internet no dia 12.06.2020, promovida pela revista IstoÉ: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

O Ministro da Defesa e as forças armadas publicaram nota repudiando a declaração e representaram a PGR por considerarem que o ministro violou a Lei de Segurança Nacional: “incitar à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”, e incorreu nos crimes do art. 219 do Código Penal Militar: “Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público”.

Inicialmente cogitaram de crime de difamação contra o Exército brasileiro. Mas a tese é infundada.

O crime de genocídio, previsto no art. 1º da lei nº 2.889/56, tem como bem jurídico protegido a existência de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso; e só a pessoa humana pode cometê-lo em quaisquer de suas modalidades. Como o Exército não pode ser sujeito ativo desse crime, a conduta do Ministro não pode ser classificada como calúnia, que consiste em: Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: (Código Penal).

Assim, embora a frase isolada de que o Exército está se associando a esse genocídio possa, aparentemente, configurar o crime de difamação (art. 139 do CP), a própria narrativa mostra que não houve imputação de um fato determinado, que traduza um acontecimento desonroso concretamente, como exige a lei, posto que a conclusão se construíra sob uma hipótese que, se existente, seria péssimo para a imagem das forças armadas.

Neste caso, o que se verifica é uma crítica à gestão do Governo Federal na área da saúde, que se diz esvaziada como possível tática do Chefe do Executivo de atribuir responsabilidades a governadores e a prefeitos. A afirmação de que o Exército está se associando a esse genocídio parece referida ao fato de o atual Ministro da Saúde ser General do Exército em atividade.

A opinião do Ministro do STF – certa ou errada – é construída sobre a premissa de que haveria um vazio deliberado na gestão da saúde para livrar o Presidente da República de responsabilidades políticas, asserindo, a partir dessa hipótese, que “se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa”, pois, segundo entende, “isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas”. Daí ter concluído: “o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

No fundo está o problema da presença de militares da ativa no Ministério da Saúde, algo que, objetivamente, não é compatível com o papel constitucional das forças armadas (art. 142, II, CF). Logo, é fácil ver que, ao contrário de incitar à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis ou propalar fatos, que sabe inverídicos capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público, o sentido explícito da crítica não é o de atacar a imagem das forças armadas, ainda que o autor possa ter empregado expressões ácidas ou excessivas.

Frente a problemática, o leitor pode indagar: por que os ofendidos e os seus advogados vão à Justiça pedir punição por comportamentos que sabem, ou deveriam saber, que não constituem crimes?

Uma resposta possível a essa pergunta é de que, afora raras exceções, políticos não buscam provar o que alegam. A política não se rege pelo código binário lícito/ilícito, mas pelo critério da conveniência e oportunidade; o objetivo não é obter a instauração de um processo criminal e a condenação do oponente, más assinalá-lo com a pecha de criminoso, estigmatizá-lo junto à opinião pública, contando com a repercussão midiática que as acusações provocam, e, assim, lhe transferir o “ônus” de provar a própria inocência.

É assim que, incapazes de resolver questões em terreno político, fazem uso abusivo do Sistema de Justiça – que se submete aos princípios da obrigatoriedade da apuração de notícia de crimes e da vedação de negar jurisdição-art. 5º, XXXV da CF – desacreditar adversários políticos, acusando-os da prática de crimes graves, sujeitando-os a exposição pública por um largo período de tempo.

A Justiça é sabidamente lenta e, por isso, a tendência é que a “acusação” produza, por si só, os efeitos políticos desejados, pois a imprensa sempre poderá voltar à notícia e invocá-la contra o “acusado”, mesmo que venha a ser inocentado, instalando-se perversa reincriminação midiática sem possibilidade de defesa.

Antigamente se dizia, com a metáfora do travesseiro de penas, que a acusação a um inocente não poderia ser reparada pela impossibilidade de se recolher as penas espalhadas ao vento. Supunha-se que o agravo pairava na memória coletiva; hoje, uma acusação injusta na internet macula para sempre a reputação do inocente e, quiçá, a de seus descendentes.

Esse estado de coisas frequente no Brasil produz sérias consequências para os injustiçados e para a própria ordem político-institucional. Quando a instância judiciária se dispõe a conhecer questões que não lhe compete decidir, mantém-se a confusão entre responsabilidade política e responsabilidade penal – que são independentes e se orientam por critérios distintos – possibilitando que a primeira acabe absorvida pela segunda.

Decidida a questão criminal esfuma-se a responsabilidade política. Se o acusado é absolvido, ficará santificado, pois já não se poderia tachar sua atuação de imoral ou ilegal se está acobertado por uma decisão judicial. E nem mesmo a tardia condenação criminal parece surtir efeito na esfera política.

Não é necessário provar que políticos condenados por crimes de peculato, corrupção e lavagem de dinheiro nos processos chamados mensalão e lava jato, preservaram seus mandatos e cargos partidários por muito tempo; um deles chegou a trabalhar como deputado federal enquanto cumpria pena em regime aberto; outros são líderes partidários e seguem perigosamente influentes.

Todavia, o efeito mais preocupante dessa parcela da chamada judicialização da política, que conduz à politização da justiça, é o dano que produz na imagem institucional do Poder Judiciário como instância em princípio neutra em relação à luta partidária.

O Sistema de Justiça Criminal (Polícia, Ministério Público e Judiciário) – último dos sistemas sociais, que entra em cena por insuficiência de outras instâncias de controle social – há de manter fiel observância aos postulados da legalidade penal estrita, devendo, para tanto, aparelhar-se adequadamente para oferecer resposta ágil, defenestrando provocações que não configurem infrações penais.

A rapidez sem justiça e justiça sem rapidez são intoleráveis injustiças. No Brasil, a duração de um processo regular demora 10 vezes mais que nos EUA e o aparato judicial aqui ajuda os sem-razão! (Calmon Navarro, Sacha, O Brasil e a Justiça Tardia, http://genjuridico.com.br).

A só instauração de investigações criminais, em situações como as apontadas, estimula a instrumentalização do Direito Penal para finalidades indevidas, gera falsa expectativa de punição e contribui para o aumento de conflitos institucionais. Gastar tempo e recursos públicos em investigações que de antemão se sabe inviáveis – porque não há crime, em tese, a ser investigado –, enquanto centenas de investigações sobre crimes graves reclamam atuação das autoridades competentes, é um grave erro na administração da justiça e inominável violação à igualdade jurídica.

Por outro lado, se a ação penal é instaurada anos depois da conclusão das investigações, o desgaste à imagem da Justiça é ainda mais grave, porque, ao dificultar ou impedir a produção da prova em juízo, leva a prescrições penais e a absolvições injustas.

Entre as múltiplas causas da morosidade da Justiça Brasileira, talvez a mais importante seja a falta de comprometimento (vontade) das autoridades competentes em estabelecer e cumprir rígidos procedimentos de controle de acesso à jurisdição criminal, o que conduz ao aumento de estoque de processos e leva a atuações seletivas, marcadas por um casuísmo discriminatório odioso, que põe em xeque a própria imparcialidade da Justiça.

 

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