Policiais militares de todo o Brasil não possuem treinamento adequado para o enfrentamento armado com criminosos. Expostos a situação de stress extremo, se sentem abandonados e, em caso de erro, expostos à Justiça e à opinião pública. Trabalhos voltados para capacitar os policiais em todos os processos de um confronto armado se mostrariam mais eficientes e reduziriam o índice de letalidade da Polícia, uma vez que o policial sabe como atirar, mas nem sempre entende quando deve atirar. Estas são algumas das conclusões a que chegou o comandante do Comando Regional II, coronel Wilkerson Felizardo Sandes, que abordou o assunto em sua tese de doutorado e se tornou o primeiro doutor da PM de Mato Grosso.
Para chegar a estas conclusões, o oficial estudou as percepções de 22 policiais brasileiros envolvidos em confrontos armados e estabeleceu 6 dimensões diferentes que interferem na decisão do policial em utilizar uma arma de fogo. “Este é um assunto polêmico que sempre foi tratado de uma forma simplista e, principalmente, de fora para dentro da corporação, quando na verdade deve ser abordado de dentro para fora”. Wilkerson destaca que, ainda que tênue, há uma linha que separa o uso da força da violência policial. “Entender os fenômenos que cercam estas ações é importante para mudarmos isso. Por isso, o estudo foca no uso da força e não na violência policial, que vai além da legalidade e, por isso, não caberia no estudo”.
Para o coronel, a análise de áreas de estudo, isoladamente, não são capazes de definir e compreender a atuação policial. “A sociologia, por exemplo, vê a ação policial de forma modelada, como se a PM modelasse os policiais”. Por outro lado, lembra que quando se fala em uso da força, o ente estatal dá uma arma, um preparo, mas não garante que o policial, como humano, possa se equivocar. “Este erro é apenas dele. O Estado ‘dá o tapa e esconde a mão”, quando há um acerto, é da instituição, já quando ocorre o erro ele é única e exclusivamente do policial”.
Neste sentido, defende que em casos de erros na ação policial haja a responsabilização do Poder Público. “Quando o policial faz o uso da força, faz porque recebeu ordens para isso. Nenhum policial normal se sente bem usando uma arma”. Ele lamenta o fato de que, mesmo após a sociedade ter registrado importantes avanços tecnológicos, ainda não há nada novo no enfrentamento aos criminosos. “Ainda continuamos a usar a pólvora para combater o crime, a ceifar vidas para salvar outras vidas. Isso é algo triste”.
Ao analisar a situação dos 22 policiais, o coronel acredita ser possível captar e compreender o drama vivido pelos policiais após o enfrentamento com criminosos. “Pude perceber que quando ele participa de um confronto passa a ter 3 preocupações. A física, com relação a sua integridade, a psicológica e a legal. Com isso, passei a ver o drama do policial decente, que recebe uma arma, um treinamento para usar esta arma e se vê em meio a este tipo de situação”. O estudo possibilitou ao oficial realizar um mapeamento do perfil destes policiais, quem são, como vivem, o que pensam, entre outros pontos. “Vimos que são pessoas religiosas, com bom grau de instrução, voltadas para a família. Percebemos que geralmente são jovens e possuem entre 10 e 20 anos de serviço. Eles vivenciaram de 2 a 7 confrontos armados”.
O número de confronto, aliás, em comparação com dados fornecidos pela Polícia derruba um mito, o de que eles ocorrem com freqüência. “Na verdade, uma troca de tiros, ainda mais quando tem alguém baleado, é um evento impactante. Só para se ter uma ideia, em Mato Grosso, no ano de 2012 foram 116 mil chamados registrados, apenas 20% do número real, o que dá quase 580 mil, com 55 mil pessoas presas e 1,5 milhão de pessoas abordadas”.
Antes de ingressar nas 6 dimensões, Wilkerson explica que são 5 os níveis que definem o uso da força policial. “O primeiro é a verbalização, quando o agente pede, por exemplo, para uma pessoa sair de um determinado lugar. O segundo é um contato físico, o policial coloca a mão no ombro da pessoa exaltada, por exemplo. Já o terceiro é o uso da algema, a imobilização da pessoa, porque os 2 primeiros falharam. No quarto, por haver ainda uma resistência, há o uso de armas não letais e já no quinto, quando está com sua vida em risco, faz uso da força letal”. O coronel pontua que estudou apenas casos em que o último nível foi necessário.
Dimensões – A primeira dimensão, ou seja, fator que influencia a decisão do policial tem a ver com seu perfil de atuação profissional. “Percebemos que 60% são os chamados operacionais, são proativos. Eles entram na viatura e atendem a população e todos os chamados. Já 10% são policiais que excedem o nível da força, possuem um comportamento violento. 5% são corruptos; 12% são policiais sem proatividade, que fogem do trabalho policial. Outros 5% não possuem aptidão e mais 5% são cansados, querendo já se aposentar. Apenas 3% são policiais desajustados emocionalmente, com dependência química, alcoolismo”. O estudo mostra que os 2 primeiros perfis são os mais propensos a se envolver em situações de confronto.
A segunda dimensão é o ambiente do confronto. Para fazer a análise Wilkerson separou os policiais em 2 grupos, os de Rádio Patrulha e os policiais que integram forças de Operações Especiais, “porque são situações diferentes no trabalho de policiamento”. A separação possibilitou a descoberta de resultados considerados interessantes. “Na grande maioria dos casos o suspeito atirou primeiro. O que muda, de um tipo de policial para o outro, é o número de pessoas envolvidas. Na Rádio Patrulha são 2 policiais contra 2 suspeitos e nas Operações Especiais de 4 a 8 soldados contra de 1 a 5 suspeitos. O resultado difere porque na Rádio Patrulha grande parte dos suspeitos atingidos fica ferida enquanto nas Operações Especiais eles morrem”. A explicação para estas diferenças está no tipo de local onde ocorrem estes confrontos. “As tropas de Operações Especiais, muitas vezes, atuam na mata onde há uma dificuldade ainda maior”.
O que sente e pensa um policial no momento em que toma a decisão de sacar a arma e atirar é o fator abordado na terceira e quarta dimensões. “Percebemos que, na verdade, a tomada de decisão é racional porque quando o policial vai para a rua ele sabe que pode se deparar com o confronto”. A maior parte dos policiais, quando em confronto, pensa em neutralizar o perigo no medo de morrer, risco de errar, na família e em casos de policiais mortos em confronto.
Os confrontos geram distorções cognitivas que podem ser trabalhadas, antes que as situações reais ocorram, defende Wilkerson. “Para você ver, 83% afirmaram ter sentido o efeito da visão de túnel, o mesmo percentual viu melhora na sua acuidade visual e quase 40% sentiram o efeito de dissociação, como se eles saíssem do corpo e vissem a cena de fora”. Se durante a troca de tiros há uma situação de grande stress, é depois do confronto que os problemas mais ocorrem. “O estudo mostra que quando acaba o confronto vem a sensação de alívio, por estar vivo, mas aí vem a preocupação com o resultado, incluindo processos eventuais. Por último vem o stress tardio. Os policiais deveriam ter um acompanhamento psicológico intenso”.
As duas últimas dimensões envolvem o treinamento e os valores e expectativas dos policiais após um confronto. “O treinamento no alvo de papelão ensina como usar, mas não quando e, ainda por cima, tira a sensibilidade do atirador porque esquece que, na vida real, não é um pedaço de papel, mas uma vida humana, que está do outro lado”. Os policiais relatam que, em caso de erro, se sentem abandonados pela corporação. “É aquela coisa, quando há um acerto é da instituição, quando há um erro é do policial. Por isso existe esta rede de solidariedade entre os policiais contra todos, porque eles tomam decisões difíceis todos os dias”.
Conclusões – Para o coronel, o estudo serve para trazer uma reflexão sobre o assunto. “Na área da ação policial, não basta conhecer as regras do jogo, porque elas não ensinam como jogar”. Defende que mudanças neste sentido ocorrerão com o trabalho voltado para duas frentes, a redução da letalidade e para reduzir a criminalidade. “O Estado precisa repensar quais outros meios poderão ser empregados para a a defesa da propriedade, sem o sacrifício de outras vidas”.