sábado, 20/abril/2024
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Rocha de Mato Grosso desafia tese sobre glaciação

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O lugar é um laboratório do Instituto Astronômico e Geofísico da USP, gelado apesar do calor da manhã de verão em São Paulo. As paredes da sala são blindadas, para isolar o campo magnético da Terra. “Bússolas não funcionam aqui”, diz Eric Font, enquanto tira de uma gaveta pequenos cilindros rosados que um incauto confundiria com paçocas de amendoim.

Os tais cilindros são amostras de dolomita, uma rocha parente do calcário. Eles foram coletados em Mirassol D’Oeste, Mato Grosso, e são o testemunho de um tempo em que o que é hoje a Amazônia estava coberto por uma capa de gelo, há 630 milhões de anos. Font, 31, um geólogo francês que acaba de concluir seu doutorado pela USP e pela Universidade de Toulouse, analisa essas rochas na tentativa de confirmar uma das teorias mais fascinantes e polêmicas sobre a evolução do planeta: a chamada Terra Bola de Neve (“Snowball Earth”). E já adianta: ela precisa de revisão.

“Eu não concordo com o Hoffman”, diz num português perfeito, mas carregado nos érres. Font se refere a Paul Hoffman, o pesquisador da Universidade Harvard (EUA) que propôs o modelo “snowball” em 1998.
Hoffman afirmou que a Terra passara por pelo menos três grandes glaciações no Período Neoproterozóico, entre 720 milhões e 580 milhões de anos atrás. Semelhanças encontradas por ele entre formações rochosas da Namíbia e do Canadá indicavam que a capa de gelo teria chegado até o equador e derretido milhões de anos depois, simultaneamente, como resultado de um aquecimento global para lá de extremo: as concentrações de gás carbônico na atmosfera teriam sido 350 vezes mais altas do que as atuais.

Tempos difíceis

O modelo “bola de neve” tem implicações diretas para a evolução da vida. O Neoproterozóico foi o período em que surgiram os primeiros seres de várias células. As três grandes glaciações propostas por Hoffman, ocorridas há 720 milhões de anos, 630 milhões de anos e 580 milhões de anos tornaram a vida difícil no planeta e causaram extinções em massa, criando uma pressão forte para a diversificação dos organismos. O resultado foi a chamada “explosão cambriana”, há cerca de 540 milhões de anos, na qual surgiram todos os filos de animais existentes hoje em dia.

As principais evidências encontradas por Hoffman das alterações climáticas radicais do Neoproterozóico são os chamados “carbonatos de capa”. Trata-se de grossas camadas de dolomitas e calcários que se depositaram no fundo do mar logo após as glaciações. Elas são virtualmente idênticas em várias partes do mundo.

O raciocínio prevalente entre os cientistas é que esse tipo de rocha se forma em mares quentes e em períodos de tempo muito curtos, geologicamente falando -cerca de 10 mil anos. Além do mais, dolomitas têm origem inorgânica, enquanto calcários geralmente são restos de carapaças de microrganismos marinhos.

Em sua tese de doutorado, Font resolveu investigar os carbonatos de capa de Mirassol D’Oeste para saber o quão sólida era a evidência em favor do modelo “snowball”. A primeira providência foi analisar o magnetismo daquelas rochas para determinar se o gelo realmente chegou ao equador.

As rochas têm a propriedade de guardar a “memória” do campo magnético da Terra. E, assim como os continentes mudaram de lugar no passado e ainda mudam, os pólos magnéticos Norte e Sul também dançam, chegando a inverter posições periodicamente. O paleomagnetismo permite recuperar a memória de uma rocha e dizer em que latitude e longitude ela esteve quando se formou.

“Quando Hoffman propôs o modelo, só havia um pólo paleomagnético confiável, na Austrália, e indicava gelo em baixas latitudes”, diz Font. O que não poderia ser generalizado para o resto do planeta. Estudos posteriores de rochas da China, de Omã e agora de Mato Grosso parecem confirmar essa parte da hipótese.

Não foi bem assim
Mas o cientista francês não parou por aí: resolveu analisar quimicamente as dolomitas e medir, ao longo dos 20 metros de espessura dessas rochas em Mato Grosso, quantos sinais de troca de lugar dos pólos magnéticos havia.
Ambos os resultados parecem contradizer pontos fundamentais da teoria de Hoffman. A análise química mostrou que as dolomitas provavelmente são resultado de atividade biológica –ou seja, a crise na biodiversidade não teria sido tão grave quanto o modelo propõe. “Ou seja, talvez o gelo não tenha sido tão determinante para a explosão cambriana”, diz Font.

“Isso não é uma observação nova”, rebateu Hoffman à Folha. Segundo o cientista, a presença de estruturas microbianas nessas rochas já havia sido detectada.

O núcleo da questão
A grande surpresa veio da análise das reversões magnéticas. Elas mostraram que, durante a deposição das dolomitas de Mirassol D’Oeste, os pólos magnéticos da Terra trocaram de lugar pelo menos cinco vezes. Segundo Font, isso sugere que a formação dessa capa rochosa ocorreu em 1 milhão de anos, não em 10 mil anos, como propôs Hoffman -ou seja, as mudanças climáticas não foram assim tão radicais.

“Há um conflito sobre a escala de tempo de pelo menos cem vezes”, admite Hoffman. Segundo o americano, a única maneira de conciliar a teoria com as observações é imaginar que o núcleo da Terra, a esfera de metal incandescente que determina o campo magnético, não estivesse totalmente formado há 630 milhões de anos -o que seria outro golpe nas certezas da geologia.
“Isso permitiria reversões freqüentes”, diz. “Mas quem sabe? É um grande paradoxo. Paradoxos assim, quando resolvidos, geralmente têm grandes implicações.”

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