Quem precisa viajar de Cuiabá para Sinop, ou no trecho inverso, enfrenta dificuldades em encontrar horários e vagas disponíveis no transporte intermunicipal. O número de ônibus circulando nesta linha caiu pela metade desde março, quando uma decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso tirou uma das 2 empresas que operavam e deixou apenas 1. A situação é relatada em diversos ofícios encaminhados nesta semana para a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados (Ager) e ao governador Blairo Maggi.
Nos documentos, presidentes de associações comerciais, Câmaras Municipais, Prefeituras e clubes de serviços apontam a existência de um monopólio no transporte intermunicipal na região Norte de Mato Grosso, pela empresa Real Norte, que hoje é a única com a concessão da linha que liga os municípios Cuiabá e Sinop. Justificam que a diminuição da oferta causa prejuízos ao desenvolvimento da região e apontam falhas no sistema de operação da empresa como atrasos e frota precária. Neste contexto, o movimento exige que seja feita nova licitação para concessão do transporte na região, uma vez que o contrato da Real Norte está vencido, enquanto que da concorrente, a Satélite, está em dia.
Ocorre que a decisão judicial determinou que a Ager fizesse valer um contrato firmado em 1988, por licitação, na linha que liga os municípios de Cuiabá e Alta Floresta, que entrou em vigor no ano seguinte. Na época, a Real Norte e a Satélite foram as vencedoras do certame, sendo que a primeira teve direito a 60% dos horários e a segunda os 40% restantes. O contrato previa que nenhuma delas poderia vender passagens entre os municípios que ligavam estas cidades, como Sinop, já que havia uma outra linha apta para este serviço. No entanto, quem tinha o direito de operar neste trecho específico era a própria Real Norte, que havia vencido uma licitação paralela, e portanto, legal. O contrato tinha validade de 10 anos.
Até 1999, esta foi a situação seguida no nortão. Quando estava próximo do período de vencimento, as 18 empresas que operavam na região, em diversas linhas, entre elas a Real Norte e a Satélite, entraram com pedido de renovação junto ao governo estadual, baseadas em lei estadual que permitia o trâmite. No entanto, o Ministério Público Estadual moveu uma ação civil pública tentando impedir as renovações, apontando inconstitucionalidade. Justificava que a Constituição não permitia a renovação do contrato.
Ao serem analisadas por magistrados diferentes, a ação contra a renovação da Satélite foi negada e contra a Real Norte foi aceita. Na decisão, foi determinada a proibição da renovação e a nulidade do contrato. A determinação não era para que os ônibus deixassem de rodar, mas que isso fosse feito apenas após a realização de uma nova licitação pelo governo do estado. A empresa continuou operando, enquanto tentava reverter a situação na Justiça, com recursos. O último deles foi para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou pedido e agora deve subir para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao ser renovado, as restrições quanto a venda de passagens no trecho entre Sinop e Cuiabá deixaram de existir no contrato da Satélite. A partir daí, tanto Satélite quanto Real Norte operavam de forma igual e sem restrição de trecho entre a Capital e Alta Floresta. No entanto, em meados de 2004, a Real Norte muda de proprietários, que apontam irregularidades no contrato da Satélite, considerando que seria ilegal a venda de bilhetes na região que antes era proibida, movendo, no ano seguinte, uma ação para que os contratos em vigência fossem os firmados em 1988, cuja decisão favorável foi dada em março deste ano.
Para o diretor da Satélite, Andrigo Gaspar Wiegert, a decisão que tirou os ônibus da sua empresa de circulação entre a linha Cuiabá e Sinop foi injusta, já que a concorrente operou por 10 anos sem permissão no contrato. Segundo ele, caso a decisão seja mantida, a Satélite terá de demitir de 200 a 250 empregados diretos, entre funcionários de bilheteria, mecânica, motoristas e lavadores de veículos. Afirma que a partir da retirada da frota da Satélite do trecho o número de vagas gratuitas diminuiu drasticamente, prejudicando pessoas deficientes e idosos. "Eles precisam aguardar cerca de 28 dias na fila para poder viajar gratuitamente. Antes, a espera era de 5 a 8 dias. A frota disponível hoje não é suficiente para atender toda a demanda, que é grande".
A Satélite já entrou com recurso para reverter a decisão no Tribunal de Justiça e diz que os prejuízos provocados teriam chegado a cerca de R$ 300 mil em um mês com a frota parada.
Por outro lado, o presidente da Real Norte, Éder Pinheiro, argumenta que a concorrente teve o contrato mantido por influência política e a renovação, em 1999, ocorreu de forma irregular. Ele garante que as queixas quanto à qualidade da frota e o número de ônibus disponíveis não são reais e que a partir da demanda são colocados carros extras. "A idade máxima dos nossos carros é de 2 anos".
Sustenta que desde que assumiu a empresa, em 2004, não são registrados acidentes com mortes nas estradas e que o serviço oferecido aos passageiros é de qualidade. Também ressalta que investiu R$ 28 milhões em 28 novos ônibus nos últimos 2 anos. As brigas entre Satélite e Real Norte já teriam avançado os patamares formais e partido para as vias de fato, conforme informações. Um termo de ajustamento de conduta firmado entre o governo do estado e o Ministério Público Estadual deu um prazo até março de 2010 para a realização de nova licitação para todos os contratos vigentes em Mato Grosso. Até lá, tudo será mantido como está. O edital deve ser lançado ainda este ano.
A Ager argumenta que independente do desentendimento entre as 2 empresas, está seguindo o que determina uma decisão judicial, que pode ser derrubada a qualquer momento, e não considera a existência de um monopólio. "O usuário não pode ser prejudicado por uma disputa entre empresas", afirma Ronilson Rondon Barbosa, procurador jurídico da Ager.
Para ele, a confusão foi provocada a partir de interpretações diferentes pela Justiça, desde a análise dos pedidos da ação civil pública que decretou nulidade do contrato da Real Norte, em 1999. "O mesmo tribunal que deu liminar de nulidade agora mandou valer edital de 20 anos".
Em resposta ao documento enviado pelas entidades públicas e privadas do nortão, a Ager enviou um ofício em que informa que está "tentando sensibilizar o Poder Judiciário para que analise os prejuízos que vêm sendo causados aos usuários do transporte na região".
Em outro trecho, a presidente da Ager, Márcia Vandoni, pondera que em 1988, quando o contrato vigente foi firmado, "não havia fluxo de passageiros nas linhas parciais, entre Cuiabá e cidades ao longo do trecho até Alta Floresta, por exemplo. Era um momento econômico diferente do atual. Hoje vivemos um desenvolvimento acelerado no Estado e precisamos adequar o sistema de transporte a esta nova realidade".
Por isso, ressalta a presidente, é importante avaliar o que representa para a população estabelecer uma regra baseada em uma realidade de 20 anos.