Exposição aberta hoje (2) na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro, Cidadãos de Junho resgata a memória das manifestações que ocorreram no país em junho do ano passado e completam um ano amanhã (3). Os protestos levaram milhares de brasileiros às ruas de 143 municípios, sendo oito capitais. O evento é organizado pelo cientista político Júlio Aurélio Vianna Lopes, pesquisador da FCRB.
Pesquisa inédita feita por Lopes destaca a importância das manifestações de junho de 2013, “mesmo que elas não tenham continuado depois de junho, ou mesmo que a classe política não tenha acolhido aquelas manifestações”, disse ele à Agência Brasil.
Lopes salientou que as manifestações de junho do ano passado têm importância, inclusive internacional, porque se equiparam aos movimentos ocorridos em outros três países democráticos, entre 2011 e 2013: o Movimento Indignados, na Espanha, em maio de 2011, por mudanças nas leis eleitoral e de hipotecas; a ação Ocupem Wall Street, nos Estados Unidos, em setembro de 2011, por investimentos em saúde e pela paz; e o Movimento do Parque Gezi, na Turquia, em maio de 2013, em defesa do meio ambiente e do lazer público.
“São movimentos de renovação da democracia. São movimentos críticos da democracia. Mas a crise aí é uma crise de crescimento, de maturidade, porque não são movimentos contra a democracia, mas sim pelo seu aperfeiçoamento”, disse o cientista político.
Ele lembrou que hoje em dia todos os movimentos usam as ferramentas tecnológicas, comofacebook e internet. Entretanto, o que dá uma identidade ao movimento é o seu conteúdo, as suas reivindicações. Lopes avaliou que, pela primeira vez na história brasileira, as manifestações de junho de 2013 apresentaram reivindicações por direitos universais e, diferentemente de outros protestos, como o Diretas, Já, por exemplo, não foi corporativo nem teve entidades representativas. “Foi um movimento difuso, por direitos para todos, independente de sexo ou profissão. O que eles reclamaram foi para todos”, salientou.
O que ocorreu de lá para cá foi muito diferente, disse ele. “As multidões de junho eram muito maiores. Mas não era apenas uma questão de número. É porque as suas reivindicações foram por políticas públicas universalistas. O que faz com que esse movimento possa ser comparado com outros, fora do Brasil, é que foi um movimento pela qualidade de vida comum, coletiva”. Os manifestantes expressavam problemas comuns da vida urbana, insistiu Lopes.
A pesquisa evidencia, de forma clara, a divisão existente entre os manifestantes; não somente na forma de se expressar, uma vez que havia manifestantes pacíficos e violentos. A diferença era também de orientação. Em comum, havia a questão do contraste entre o cuidado público com os estádios e a Copa das Confederações, à época, e a precariedade dos serviços públicos de transporte, saúde e educação. “Aí terminava a identidade. Havia uma divisão, e foi ela que decidiu o destino das manifestações”, indicou.
Os manifestantes violentos se pautavam pela posição contra a Copa. O objetivo para eles era inviabilizar a Copa, considerando que isso seria legítimo, na medida em que não havia serviços públicos de qualidade no país. Já os manifestantes pacíficos, que constituíam a maioria, tinham outra orientação, que era a exigência do padrão da Federação Internacional de Futebol (Fifa) na educação, na saúde e no transporte. No seu entender, “a maioria deles nunca foi contra a Copa. Eles queriam apenas que os serviços públicos de transporte, saúde e educação, nessa ordem, recebessem de todos os governos do Brasil o mesmo cuidado dado à Copa”. Embora houvesse dois segmentos muito claros nos protestos, Lopes comentou que a grande força veio das multidões pacíficas.
Para o pesquisador, o movimento de junho de 2013 não se desfez porque foi derrotado. “Ele foi vitorioso”, apontou. Já no dia 20 de junho, várias cidades haviam reduzido as tarifas de transporte público. Além disso, os manifestantes conseguiram várias inovações legislativas. Entre elas, destacou o fim do voto secreto nas cassações de parlamentares, a exigência da ficha limpa para qualquer servidor público, a transformação da corrupção de gestor público em crime hediondo e a manutenção dos poderes de investigação do Ministério Público. “Tudo isso foi uma conquista daquelas manifestações de junho, ainda que os manifestantes não tenham reclamado propostas pontuais”, acrescentou.
Essa foi, por sinal, uma fraqueza do movimento, de acordo com a avaliação de Lopes, pois “a falta de uma direção provisória fez com que a divisão depois, com o tempo, fosse se aprofundando”. Ele acentuou, no entanto, a importância maior dos manifestantes pacíficos em relação àqueles que optaram pelas depredações de patrimônio público e privado. Observou que depois de junho de 2013, voltaram a ocorrer manifestações de categorias profissionais ou corporações, que também são legítimas. Os protestos de junho, entretanto, são históricos porque constituíram uma novidade, na medida em que foram um movimento por direitos universais, que nunca houvera antes, defendeu.
Atualmente, em razão da agenda da Copa do Mundo, o que há são movimentos de categorias que se valem do contexto da Copa para apresentar suas reivindicações. Um exemplo são os rodoviários, no Rio de Janeiro. Eles têm a Copa como um mecanismo de pressão sobre as autoridades, disse. “Só que esses movimentos confluem com as franjas de 2013, que são os manifestantes violentos. Os protestos de junho de 2013 refluíram devido à polarização entre as depredações e os abusos policiais registrados, sem exercer uma repressão seletiva na maioria das vezes”, analisou.
Lopes enfatizou que as manifestações de junho trazem um aprendizado que pode ser importante para movimentos futuros, porque os anseios por qualidade de serviços públicos continuam existindo, e se tornaram mais sólidos. “Melhor seria se a classe política em geral e os candidatos à Presidência da República tivessem uma sensibilidade maior com relação a esse tema”, sugeriu.
A exposição Cidadãos de Junho reúne uma coletânea de fotos de quatro fotógrafos e um jornalista, que resgatam os protestos de junho de 2013. Uma curiosidade, no caso: o repórter Carlos Santiago só percebeu na hora da revelação que em sua foto aparecia Fabio Raposo, preso meses depois, acusado pela morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes, Santiago Andrade. A mostra ficará aberta ao público até o próximo dia 6, gratuitamente, no saguão do prédio administrativo da FCRB. Foi lançado também durante o evento o livro Desafios da Ordem de 1988, que reúne cinco artigos sobre direitos difusos, marca das manifestações de junho do ano passado.
Na avaliação da advogada Andréa Monteso, doutoranda em política pública, a exposição espelha a cara da democracia brasileira. “Eu costumo dizer que a nossa democracia é às avessas. Você tem, ao mesmo tempo, pessoas com um ideal, que chegam ali, de forma pacífica, desejando melhorias, convivendo com pessoas que não necessariamente pensam no interesse maior da sociedade, que se escondem atrás de máscaras, mas fazem parte da nossa sociedade”. Para Andréa, esses manifestantes expõem a gravidade do conflito que foi construído na sociedade e o distanciamento entre o desejo da população e a conduta dos governantes. “Esse descaso, que é histórico, está tomando essa dimensão que está estampada aí: violência, desejo de maior justiça social, de paz, mas tudo desordenado”, disse ela.