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Em Mato Grosso, filha de cantora assassinada pelo “Rei do Bolero” defende prevenção e redes de apoio para mulheres

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Redação Só Notícias (foto: assessoria)

Tinha apenas dois anos quando sua mãe, a cantora Eliane de Grammont, foi assassinada a tiros pelo pai, o cantor Lindomar Castilho, o “rei do bolero” que embalou os anos 70 com sucessos românticos como “Você é Doida Demais”. Na tarde desta quarta-feira, Lili de Grammont, hoje bailarina, coreógrafa e ativista, trouxe sua história de dor e superação para o palco do II Encontro das Redes de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, realizado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso nos dia 10 e 11/12, comovendo a plateia com a palestra “Órfã do feminicídio: Transformando a dor em força”.

O crime que chocou o Brasil aconteceu na madrugada de 30 de março de 1981. Eliane cantava no café Belle Époque, em São Paulo, quando Lindomar Castilho invadiu o local e disparou cinco tiros contra a ex-mulher, matando-a no palco. Por quatro anos, enquanto o julgamento se arrastava, a família protegeu a menina da verdade. “Para me proteger, eles não me contaram detalhes sobre a morte da minha mãe. Eu sabia que ela tinha morrido, mas não sabia como nem por quem. Na minha cabeça infantil, eu pensei: ‘Foi um ladrão que matou minha mãe’ “, relembrou.

A revelação veio de forma intempestiva, através de uma prima da mesma idade durante uma festa de família. “Você é boba, nem sabe que foi seu pai que matou sua mãe”, disse a criança. “Foi uma prima minha que chegou e disse isso. Essa foi a forma pela qual eu descobri, de um jeito nada legal”, contou Lili, emocionada.

O impacto da descoberta foi devastador. “Essa é uma grande dificuldade dos órfãos do feminicídio. Muitos autores de violência são pais que, para a sociedade, parecem perfeitos. Eles centralizam a violência apenas na mulher, e a filha ou filho fica apaixonado por eles. Eu era apaixonada por meu pai como filha, e ao mesmo tempo acompanhava o sofrimento da minha avó e da família durante o julgamento”, explicou.

Lili descreveu aquele momento como uma morte simbólica. “O dia em que eu descobri foi o dia que, emocionalmente, meu pai ‘morreu’ para mim. Eu senti que a morte deles estava ligada: minha mãe matou meu pai, numa frase que soltei na terapia, um ato falho que me ajudou a entender que os homens também morrem quando matam.”

Durante anos, Lili evitou falar sobre o assunto. “Por muito tempo, eu queria ser só eu mesma, a Lili, e não a filha do Lindomar e da Eliane”, confessou. A transformação veio gradualmente, quando percebeu o impacto de sua história na vida de outras pessoas.

“Um dia, num grupo de mulheres, acabei fazendo uma palestra, que não chamei assim, foi um depoimento da minha vida. Percebi o impacto daquele relato genuíno, que pensei em fazer diferente. De depoimento, virou palestra, e eu comecei a ser indicada para outros lugares”, relatou.

Na palestra desta quarta-feira, Lili foi direta ao apresentar-se. “Eu não chamo isso de palestra, eu chamo de um relato pessoal. É a forma que encontrei para que os fatos e a realidade toquem o coração e, além de não desmobilizar emocionalmente as pessoas, sirva como um chamado à ação.”

Falar publicamente sobre o trauma tem sido parte fundamental do processo de cura. “Sim, falar é o primeiro passo para a cura, porque ninguém sai dessa sozinho. Para o órfão de feminicídio, a morte da mãe é o fim para ela, mas o começo de uma jornada para uma criança, muitas vezes marcada pelo medo de amar”, explicou Lili.

A ativista revelou que teve dificuldade até para decidir ser mãe. “Foi difícil até decidir ser mãe e trabalhar para que meu filho saiba o que é amor de verdade e não repita padrões. Tenho um companheiro que também reflete sobre masculinidade e machismo estrutural. Cada vez que falo, estou me reorganizando, ressignificando a memória e tendo esperança”, disse.

A dança se tornou sua válvula de escape e ferramenta de cura. Hoje bailarina profissional, coreógrafa e diretora de uma companhia, Lili criou o espetáculo “Casa de Vidro” para falar sobre violência psicológica e os primeiros sinais de violência doméstica. Também escreveu o livro “Uma Escada para o Ar”, que representa a busca por se conectar com a mãe pela memória e pela superação.

Sobre a questão das políticas públicas brasileiras em relação à violência contra a mulher, Lili foi enfática ao apontar a prevenção como a maior lacuna. “Falta muita coisa, mas para mim, o mais urgente são as medidas de prevenção. Hoje, temos delegacias, casas da mulher para denúncia, mas investimos pouco na prevenção real”, avaliou.

Os dados são alarmantes: o Brasil registra mais de 2 mil crianças órfãs por ano cujas mães foram vítimas de feminicídio. “Muitas vezes, essas crianças ficam com as avós enlutadas, e a violência se multiplica. As redes de apoio existem, mas não são fortificadas pelas políticas públicas, e ainda dependem muito de trabalho voluntário, com poucos recursos”, alertou.

Lili criticou a ausência de políticas específicas para órfãos do feminicídio. “Sobre órfãos do feminicídio, não temos políticas públicas específicas, nem centros especializados. O que tem é uma pensão da mãe morta, dividida entre os filhos, valor insuficiente para garantir as necessidades básicas”, pontuou.

Lili fez um chamado especial aos homens presentes no evento. “Convido especialmente os homens aqui presentes a caminhar conosco nessa jornada. Porque também não é fácil a carga que vocês carregam. Precisamos que homens, que estão ao nosso lado, entendam que lavar a louça não é ajudar a mulher, é cuidar da casa.”

Sobre a relação com o pai, hoje com 85 anos, Lili revelou que mantém contato e, junto com a irmã, cuida dele. “Eu e minha irmã, que é de outro relacionamento dele, nos revezamos nos cuidados”, contou. Quanto ao perdão, a resposta é complexa. “Sobre perdoar, eu sempre digo que é sim e não. Não tem volta, não é simples apagar tudo. Eu tento ampliar meu campo de visão para entender que ele é fruto de uma estrutura cultural machista”, refletiu.

Lili apontou como a cultura da época alimentava a violência. “Por exemplo, a música que outro cantor famoso cantava na época da morte da minha mãe dizia: ‘Se te pego com outro, te mato…’ e isso era algo que refletia a cultura daquela época. Esse comportamento possessivo foi alimentado pela cultura, que endossa o controle da mulher e a violência.”

A ativista concluiu com um desejo: “Gostaria de poder voltar no tempo para mostrar para o pai que isso destruiria a vida dele também, porque, ao matar minha mãe, ele destruiu a vida dele, dela e da família. Essa fúria é vingança contra o próprio agressor, não só uma vítima.”

O crime que vitimou Eliane de Grammont foi um marco na luta contra a violência de gênero no Brasil. Após sua morte, em 1982, surgiu a primeira Delegacia da Mulher do país. Nos anos 1990, foi criada em São Paulo a Casa Eliane de Grammont, que oferece atendimento a vítimas de violência sexual e doméstica.

Ao final de sua fala, Lili deixou uma mensagem de esperança. “Reforço: o amor cura, e o amor se manifesta através do cuidado, do respeito e da ação conjunta. Eu acredito no ser humano, na alegria e na paz. Convido todos a se emocionar, a não ter medo da própria emoção. Vamos provar juntos que é possível uma convivência saudável e respeitosa, o fim da violência e o florescer do amor verdadeiro.”

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