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A verdade e a mentira

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Alexandre Garcia

Na posse de Mercadante no BNDES, o Presidente da República, queixando-se de uma suposta difamação contra o Banco, afirmou que “Nós vivemos um momento no Brasil em que as narrativas, mesmo que mentirosas, valem mais do que muitas verdades ditas muitas vezes”. Será que é apenas um momento, ou um aperfeiçoamento de séculos? A primeira página do Correio da Manhã de 9 de março de 1919, está toda ocupada por um discurso de Ruy Barbosa, em que há um trecho dedicado às verdades e mentiras.

Ruy Barbosa afirmou que há mentira em toda a parte, nos programas, nos projetos, nas reformas, nas convicções, nas soluções. “Mentira nos homens, nos atos e nas cousas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita.. Mentira nos partidos, nas coligações, nos blocos.” E segue, discursando na Associação Comercial do RJ: “há mentira nas instituições, nas eleições, nas apurações, nas mensagens, nos relatórios, nos inquéritos…mentira nos desmentidos. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes(íntegros), ao cabo, muitas vezes não sabem se estão ou não mentindo.”

Não é que Ruy Barbosa esteja atual como Lula; é que, desse discurso de 1919 até hoje, nós continuamos convivendo com esse tipo de cultura, como cúmplices já que só nós, eleitores, somos capazes de mudar essa situação, pelo voto e pela cobrança de nossos mandatários. Passaram-se 104 anos, desde esse desabafo de nosso mais ilustre jurista – e a gente relê o que o jornal da época publicou, e descobre, assustado, que está no jornal de ontem, com palavras do Presidente da República. E que, mais de um século depois, poucos, como Ruy, se escandalizam com as mentiras. Parece que a maioria prefere fingir que as aceita. Depois, acabam convivendo com a mentira e são reféns dela.

Na homilia de domingo, no Mosteiro de São Bento de Brasília, o bispo de Formosa, Don Adair, relembrou uma antiga fábula judaica sobre a Verdade e a Mentira, que se banhavam num poço. A Mentira, aproveitando-se de uma distração da Verdade, saiu do poço, vestiu-se com as roupas da Verdade e saiu pelo mundo. Vestida de Verdade, a Mentira foi bem recebida por todos. Saída sem roupas do poço, a Verdade percebe que as pessoas fogem dela, pois ninguém quer saber da Verdade nua e crua. A Mentira vestida de Verdade conta todos os dias narrativas com as mesmas intenções e as repete tanto que nossos cérebros acabam ecoando a mentira como verdade. Não exigimos que a travestida Mentira demonstre o que nos impõe; apenas aceitamos sem perceber que estão nos treinando para não discutir.

A rebeldia da desconfiança é desestimulada pela ameaça de censura e desaprovação social. A dúvida em busca da verdade sob as vestes da mentira nos desnuda perante os outros, que se afastam como se afastaram da Verdade. E quando passarmos a mentir para nós mesmos, é porque a Verdade talvez já esteja afogada no fundo do poço.

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