Os crimes de estupros cresceram 33,28% em Mato Grosso no primeiro semestre deste ano se comparado ao mesmo período do ano passado. São cerca de quatro a cinco ocorrências por dia registradas no Estado. De acordo com os dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), de janeiro a junho foram feitas 833 denúncias.
O número que, por si só já é assustador, representa ainda apenas cerca de 10% dos casos que chegam ao conhecimento da Polícia, segundo autoridades.
De acordo com o delegado Cláudio Álvares de Santana, da Delegacia de Defesa da Mulher de Várzea Grande, o que estamos vivendo hoje não é propriamente o aumento nos casos de estupros em si, mas sim o aumento no número das denúncias feitas à policia.
“Os casos não aumentaram, até porque infelizmente eles são bem maior do que os registrados, mas o que percebemos é essa tendência no aumento nas denúncias. As pessoas estão procurando mais a delegacia para registrar”.
O delegado relata que esse comportamento vem sendo percebido desde que a mídia, as escolas e outros meios de comunicação começaram a falar mais sobre o assunto “estupro” e depois que muitas vítimas desse crime começaram a levar a público suas histórias, experiências e a importância da denúncia. “Isso tem encorajado pessoas que passam ou passaram pela mesma situação”.
Para a presidente da Comissão de Infância e Juventude da Ordem dos Advogado do Brasil (OAB), Tatiane Barros, o aumento das denúncias está realmente ocorrendo e deve continuar, uma vez que as pessoas começaram a ter mais acesso à informação, além de um melhor acolhimento, tanto por parte do poder público, quanto da própria sociedade.
Ela lembra que apesar de existir ainda muito preconceito, as opiniões começaram a mudar em relação à vítima que, muitas vezes, antes era tida como a culpada pelo estupro.
“Hoje, apesar de ainda existir muito preconceito, e a cultura patriarcal ainda estar presente, temos profissionais da segurança mais preparados, temos uma sociedade mais instruída por meio da mídia, de palestras e assim por diante. Tudo isso, sem dúvidas, é uma tendência, pessoas cada vez mais informadas, o que refletirá em mais denúncias”.
A advogada destaca que a mudança é percebida, por exemplo, dentro das próprias forças de segurança. “A vítima, muitas vezes, ainda é julgada pela roupa que usava ou o lugar onde estava, mas percebemos também que aumentou o número de pessoas conscientes de que a vítima não é culpada pelo crime, e precisa de respeito e acolhimento. Hoje temos delegacias especializadas para tratar desses casos, pessoas preparadas para atender essa vítima, isso representa grandes conquistas”.
Concordando com a questão do aumento do número de denúncias, a defensora pública e presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, Rosana Leite lembra que isso também traz à tona outra realidade, a de que Mato Grosso ainda é um dos estados brasileiros com uma cultura ainda predominante do patriarquismo.
“Infelizmente essa ainda é uma realidade, podemos perceber isso por meio dessas denúncias que estão sempre aumentando. Por um lado é positivo já que essas pessoas estão confiando na justiça, mas por outro é assustador pois demonstra que não podemos nem mensurar a quantidade de pessoas que sofrem esse tipo de violência no nosso Estado. Outro ponto assustador é que os casos são cada vez mais absurdos”.
Entre as denúncias feitas esse ano no Estado, as vítimas são homens, mulheres e menores, mas um dado chama atenção. Em cerca de 42,6% desses registros, as vítimas são vulneráveis, ou seja, crianças e adolescentes. Os casos de estupro de vulneráveis, além de representar a maioria dos registros no Estado, ainda apresentaram crescimento de 28,45% no semestre.
Segundo a professora Vera Bertolini, do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Violência e Cidadania da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), os casos envolvendo menores são ainda mais complicados, já que em quase 90% deles o agressor é uma pessoa da própria família ou de convívio próximo.
“Muitas vezes a criança, quando chega a denunciar, a família tenta resolver entre eles, pensando que o crime não vai se repetir ou até mesmo com medo do escândalo para a família”.
Ela destaca também que, por diversas vezes, a própria criança quando fala é censurada, ou até mesmo acaba sendo desacreditada pela família e, por medo, acaba não tocando mais no assunto.
“Quantos casos já não vimos de abusos que ocorreram durante anos e a família alega não ter percebido. Mesmo quando essa criança não fala, ela emite sinais que são pedidos de socorro. Muitas voltam a fazer xixi nas calças, algumas começam a evitar certos cômodos da casa, não querem mais sentar no colo do agressor, entre outros”.
Ainda conforme o balanço divulgado pela Sesp, em Cuiabá e Várzea Grande o número de casos registrados por estupros de vulneráveis diminuiu 14,6% e 25,6%, respectivamente.
O delegado Cláudio Santana confirma que muitos dos casos em Mato Grosso acontecem nas cidades do interior. Para ele, esse cenário está muitas vezes ligado à questão da informação. Lembra ainda que muitas denúncia podem até não ser feitas em razão dessa falta de informação.
“O acesso à informação, muitas vezes, é mais complicado, mais restrito do que nos grandes centros. Nesses casos, então, podemos ter, por exemplo, pessoas que nem imaginam que só o ato de passar a mão, ou tocar uma criança de 13 anos já é configurado estupro”.
Na opinião de todos os entrevistados, a mudança desse cenário vai além de punições mais severas, mas está na educação que precisa ser trabalhada desde a pré-escola, até mesmo por palestras, políticas públicas, que são a única forma de proporcionar uma “mudança cultural”, que é extremamente necessária.
“Acho que a saída é essa, é falar sobre o assunto, discutir, falar sobre sexualidade, limites, tipos de abusos, a importância da denúncia, a quem eu posso pedir ajuda. É apenas isso que pode trazer mudanças”, finaliza a professora Vera Bertolini.