Passei a maior parte da minha infância em Várzea Grande, no coração do Mato Grosso. Naquele tempo, havia três represas naturais que pareciam infinitas. Duas eu só observava de longe, porque minha mãe, protetora, nunca deixou que eu me aproximasse. Mas a terceira ficava nos fundos da chácara da minha tia, e era o meu refúgio — ali eu mergulhava, ria e voltava pra casa com cheiro da natureza e liberdade.
Hoje, nenhuma dessas represas existe. Foram soterradas por casas, ruas e asfalto. A da chácara da minha tia secou e virou lembrança — um pedaço da natureza e da minha própria infância que se perdeu.
Essa memória me atravessa cada vez que estudo os dados sobre a crise climática e os limites planetários. A ciência mostra que sete dos nove processos que mantêm a estabilidade da Terra já foram ultrapassados. O planeta está exausto — assim como as crianças que, ainda pequenas, são forçadas a trabalhar para sustentar uma sociedade que esqueceu o valor do tempo e do cuidado.
É preciso compreendermos um fato: a ausência de cuidado com a Terra tem levado ao desequilíbrio de sua estabilidade, resiliência e capacidade de dar suporte à vida humana. Sempre que reflito sobre isso, penso no paralelo com o próprio ser humano. A ausência de cuidado com as crianças provoca o mesmo colapso interno: fragiliza estruturas, compromete a harmonia e destrói potenciais. Nada é mais avassalador do que exigir de uma pessoa em formação aquilo que ela ainda não está preparada para suportar. Sempre uso o exemplo do fusca puxando um bitrem — é assim quando colocamos uma criança para desempenhar funções de adultos. Não é apenas injusto: é antinatural, desrespeita os ciclos da vida e corrói o futuro.
E não se trata da velha desculpa — “se não trabalha, vai pro crime” — porque trabalho precoce e criminalidade são faces da mesma moeda: a da negação de oportunidades e da omissão social. Um país que nega à infância o direito de aprender, brincar e se desenvolver é o mesmo que priva o planeta da chance de se regenerar. Quando deixamos de cuidar do tempo da infância, também perdemos o compasso da Terra.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 138 milhões de crianças no mundo ainda vivem em situação de trabalho infantil. O corpo infantil, como o corpo da Terra, perde sua capacidade de regenerar-se. São infâncias interrompidas, sonhos adiados e futuros drenados pelo mesmo modelo de exploração que consome florestas, rios e vidas.
Quando uma represa seca, morre mais que um ecossistema — morre também o tempo da contemplação, da descoberta e da imaginação. E quando uma infância é cortada pela pressa de sobreviver, o planeta perde a capacidade de sonhar com soluções. A crise ambiental e o trabalho infantil são faces do mesmo desequilíbrio: a lógica de ultrapassar limites.
É por isso que eventos globais como a COP30, que está sendo realizada em Belém, ganham ainda mais importância — não apenas como encontros sobre clima, mas como espaços de reconstrução de um compromisso ético com as futuras gerações. Cuidar da infância também deve estar no centro das discussões sobre sustentabilidade.
Erradicar o trabalho infantil é, portanto, um ato de regeneração planetária.
Proteger a infância é proteger a Terra. Permitir que cada criança aprenda, brinque e cresça de forma plena é restaurar a capacidade de sonhar e cuidar — em nós e no mundo.
A represa da minha tia talvez nunca volte, mas outras podem nascer — se voltarmos a olhar para a Terra e para as crianças não como recursos a serem usados, mas como vidas a serem nutridas.
Cuidar da infância é reflorestar o futuro.
E reflorestar o futuro é devolver à Terra — e a nós — o direito de respirar esperança.
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COP30: Cuidar da infância é reflorestar o futuro
Valdiney de Arruda é Auditor-Fiscal do Trabalho, Especialista em Políticas Públicas e Meio Ambiente e possui MBA em ESG. Atua na defesa de políticas de proteção à infância, sustentabilidade e promoção de um desenvolvimento humano e planetário mais justo
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