terça-feira, 23/abril/2024
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O final de ano costuma ser uma época em que os sentimentos das pessoas ficam mais aflorados. Natal, festas em família, as promessas para o ano que vem, enfim, uma série de situações que nos fazem pensar sobre a vida e sobre as pessoas ao nosso redor.
 
E pensar sobre as pessoas nos leva a uma série de reflexões interessantes. Uma delas é a dificuldade que as pessoas sentem ao se relacionar com os outros. Algo que teria tudo para ser simples, mas que muitas vezes é muito difícil.
 
Freud diz que existem três limitações ao ser humano que podem deixa-lo frustrado. São elas: o envelhecimento, a força da natureza e a relação com o outro. O envelhecimento é inevitável, todas as nossas forças, todos os avanços da ciência são impotentes contra a ação do tempo. O envelhecimento inevitavelmente provoca enfraquecimento, deterioração do corpo, perda de memória e enfim, a morte, nada se pode fazer contra isso. A força da natureza tem demonstrado que contra ela somos totalmente vulneráveis. Basta lembrarmos as enchentes que ocorrem todo o ano, deslizamentos de morros, furacões… Nada se pode fazer contra eles, vão levando tudo que está a frente.
 
A terceira das situações, como citei anteriormente, é a relação com o outro. Ela apresenta duas características extremamente paradoxais. Por um lado, é a que mais permite uma intervenção da pessoa para tentar aliviá-la, pois nas relações as pessoas podem entrar em acordo, “negociar”, procurar um ponto em que fique bom para as partes. Por outro lado, dentre as três limitações citadas, essa é a que mais dá problema! As relações entre as pessoas causam mais frustração e tristeza do que o envelhecimento e a força da natureza.
 
Mas por que isso ocorre? Vamos tentar entender isso: como já trouxe em meu texto sobre ansiedade, as pessoas, desde seu nascimento, colocam o outro como meio de obter o que desejam. A criança, para saciar sua fome e o desamparo que está sentindo, vai em direção à mãe, chora para ela, só para quando ela a saciar. Ao longo da vida, continuamos fazendo isso, o outro vira fonte de realização de todos os nossos desejos.
 
Até aqui compreendemos então por que nos direcionamos aos outros, e se prestarmos atenção, todas as nossas ações vão nessa direção. Em épocas de fim de ano, por exemplo, em que muitas promessas são feitas para o ano que vai começar, deseja-se construir uma casa nova, comprar um carro novo, ser promovido, enfim vários desejos que talvez, aparentemente não tem relação nenhuma com os outros ao nosso redor. Mas, ao construir uma casa nova, não se pensa em ter mais espaço para a família, ou para amigos, aumentar a área de lazer para receber… os outros? O carro novo não é para ter mais espaço para os amigos, familiares, ou talvez um carro mais possante para conseguir pegar aquela garota? Ser promovido, ganhar mais dinheiro para… gastar com os outros. Por mais que não pareça, nossas ações estão sempre voltadas para o outro. Mas então, aonde surgem os problemas?
 
Podemos perceber no exemplo do bebê, que ele procura o outro – sua mãe – para saciar suas vontades. E é claro que sua mãe, frente àquele serzinho que ela ama tanto, não vai negar de forma alguma as demandas que vêm dele. Ele começa a vida sendo saciado em seus desejos, enquanto os que estão à sua volta apenas trabalham para isso. Agora, com o passar do tempo, as coisas vão mudando. A pessoa se vê forçada a mudar de postura, a cada dia, vão sacia-la menos e exigir dela que trabalhe, que sirva aos outros.
 
Essa passagem gera uma série de conflitos com os outros, é muito difícil sairmos daquela situação confortável e passiva, para termos que nos dirigir aos outros, sujeitar-se à vontade alheia para conseguir aquilo que já tínhamos antes sem muito esforço. Por isso até começamos a sentir certa ingratidão da parte do outro, como se eu estou fazendo a minha parte, mas ele não está fazendo a dele, ou esse mundo é muito injusto.. O problema é que o refencial de mundo justo costuma ser aquele em que a pessoa era satisfeita pelos outros sem muito esforço, como um paraíso perdido.
 
É com essa referência que geralmente se julga, condena, desdenha os outros. Em um momento difícil, se exige que o outro seja compreensível, que deixe suas coisas de lado para lhe ajudar. Quando se deseja algo, não entende como o outro pode ser tão destraído, desinteressado, que não percebe seu desejo. Em um momento de angústia, se pergunta, extremamente magoado, por que ninguém o ajuda. Se esquece nesse momento que o outro é como ele, tem momentos difíceis, tem desejos, tem angústia, assim como ele.
 
A mudança de postura faz parte do processo de maturidade de uma pessoa. Deixar de se enxergar como a pessoa mais amada, mais desejada, a qual tem tudo na mão – todos estão prontos a servi-la ­– é um processo doloroso para muitos, e as consequências disso é que hoje de tudo se faz para tentar continuar nessa posição. É um investimento exacerbado em estética, ostentação de bens, relações sociais superficiais, enfim, uma série de coisas para se mostrar uma pessoa à altura de ser desejada. Isso pode funcionar até certo ponto, mas, acredito que muitos dos que estão lendo esse texto agora já fizeram essa tentativa e ainda se sentem frustrados.
 
Mudar de postura, colocar-se como quem deseja – e não como quem é desejado – exige bastante trabalho, paciência, tolerância à frustração. É um processo doloroso, muitas vezes temos que nos deparar com situações realmente difíceis na relação com o outro, aguardar dele alguma aceitação, nos posicionar quando não concordamos – e correr o risco de ser taxados por isso –, constatar que certas pessoas não merecem nossos esforços, tudo isso é muito trabalhoso e até doloroso. No entanto, o que é a vida, senão nos relacionarmos com os outros? Será que isso não merece mais atenção de nossa parte? Em tempos de final de ano, talvez seja uma boa pensarmos mais nesse assunto para o ano que vai iniciar.
 
Ruben Demartini – psicanalista em Sinop

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